Título: A abolição do trabalho
Autor: Bob Black
Data: 1985
Fonte: Edição Projeto Periferia
Notas: Original: The Abolition of Work Autor: Bob Black Tradução: Abdoulie Sam Boyd e Lumir Nahodil Editado em Lisboa em 1998 por «Crise Luxuosa» Publicado originalmente nos EUA em 1985. A versão original inglesa (e outros ensaios do autor) está acessível em «The Disenchanted Workers Union» ( http://www.cat.org.au/dwu/ ), com a seguinte referência: Bob Black’s 1985 essay, «The Abolition of Work» appeared in his anthology of essays, «The Abolition of Work and Other Essays», published by Loompanics Unlimited, Port Townsend WA 98368 [ISBN 0-915179-41-5]. The following disclaimer is reproduced from the verso of the title page: «NOT COPYRIGHTED. Any of the material in this book may be freely reproduced, translated or adapted, even without mentioning the source.» http://www.cat.org.au/dwu/
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“Existe tanta liberdade numa moderada ditadura desestalinizada como num ordinário local de trabalho americano. A hierarquia e a disciplina no escritório ou na fábrica é idêntica àquela que encontramos na prisão ou num convento.”

Nunca ninguém deveria trabalhar.

O trabalho é a gênese de grande parte da miséria do mundo, é causa de muito do mal que acontece. Somos obrigados a viver sob o seu desígnio. Para acabar com o sofrimento, temos que parar de trabalhar.

Isto não significa que tenhamos que desistir de fazer coisas. Mas sim, provocar uma revolução jocosa, uma nova onda de vida baseada no divertimento. Por divertimento entenda-se festividade, criação facultativa, convívio. O divertimento não é passivo, é muito mais do que o jogo das crianças.

Invoco a aventura colectiva num prazer generalizado, numa exuberância gratuitamente interdependente. Necessitamos de mais tempo de pura preguiça e descanso indiferente ao salário ou à ocupação. Reparem, uma vez saídos do emprego quase todos nós queremos representar, o que conduz ao esgotamento.

Oblomovismo e Stakhanovismo [1] são dois lados da mesma invenção humilhante. Uma vida jocosa não é compatível com a realidade. O pior, é a maneira de encarar a vida como mera sobrevivência. Curiosamente — ou talvez não — todos os antigos ideólogos são conservadores porque crêem no trabalho. Alguns, como os marxistas e a maior parte dos anarquistas, crêem nele porque acreditam em pouca coisa.

Os liberais dizem que há que eliminar a discriminação no emprego. Nós dizemos, há que acabar com ele. Os conservadores apoiam o direito ao trabalho. Imitando o travesso genro de Karl Marx, Paul Lafargue, apoiamos o direito à preguiça. Os esquerdistas são a favor do emprego permanente. Nós estamos a favor do desemprego iminente. Os trotskistas agitam-se por uma revolução permanente. Nós debatemo-nos por uma orgia latente.

Todos os ideólogos que defendem o trabalho são estranhamente relutantes em confessar que o fazem em seu próprio benefício. Sempre preocupados com o salário, as horas, as condições de trabalho, a exploração, a produtividade, a rentabilidade, estão dispostos a falar, mas sobre o trabalho. Estes peritos que se oferecem para pensar por nós raramente partilham as suas consusões sobre o trabalho, projectando-nos assim a vida. Até lançam larachas uns aos outros sobre particularidades. Sindicatos e administrações embora hesitantes sobre o preço, concordam que temos que vender o tempo da nossa vida em troca da sobrevivência.

Os marxistas pensam que devíamos ser governados por burocratas. Os “libertarianos” [2] optam por homens de negócios. As feministas nada têm a obstar, desde que sejamos governados por mulheres. É óbvio que estes ideólogos têm diferentes opiniões acerca do modo de iludir o roubo no poder. Obviamente, nenhum deles põe qualquer objecção ao que se passa, desde que continuemos a trabalhar.

Talvez não estejam a levar a sério o que estou a dizer. Não somente estou a brincar como também estou a falar a sério. Ser jocoso não significa ser burlesco, embora a frivolidade não seja trivialidade. Muitas vezes convém tratar a frivolidade de um modo sério. Gostaríamos que a vida fosse um jogo, mas um jogo de alta aposta. Queremos jogar para nos defendermos. Ser jocoso não é ser “quaaludic” [3]. Temos em grande estima o torpor, mas só é recompensador quando pontuam outros prazeres e passatempos. Não estamos a promover a desocupação como uma disciplina administrada, chamada o “descanso”, longe disso. O descanso quer dizer não trabalhar por amor ao trabalho, é o tempo em que saímos do emprego sem todavia deixar de pensar nele. Muita gente existe que, ao regressar de férias, fica tão deprimida que só descansa depois de retomar o seu posto. A diferença entre o trabalho e o descanso reside no fato de no trabalho sermos, pelo menos, pagos pela nossa cedência e enfraquecimento.

Não estamos a tentar definir jogos. Quando dizemos querer abolir o trabalho, queremos mesmo dizer isso, definindo os nosso termos de um modo não idiossincrático. A nossa mínima definição de trabalho é aquela em que somos obrigados a produzir, isto é a produção compulsória. Ambos são princípios essenciais. O trabalho é a produção pela economia ou por meios políticos, por pessoas de cabelos ruivos ou por pregadores, por outras palavras, a cenoura é igual ao pau. Porém, nem tudo o que criamos é trabalho e ele nunca é propositadamente executado, é-o para que alguém saia beneficiado da sua produção. É isto que significa o trabalho. Defini-lo é desprezá-lo. E assim sendo, é muitas vezes pior do que a sua própria definição. É necessária uma cuidada elaboração do tempo. Adiantando, o trabalho é um crivo nas sociedades, incluindo as industrializadas, sejam elas capitalistas ou comunistas. Por isso ele é variado, conforme às suas características para realçar todo o ódio que em si encerra.

Usualmente, (e isto é ainda mais verdadeiro em sociedades cuja economia se encontre estatizada, do que nas de “livre mercado”, onde o Estado é na maior parte dos casos, o único empregador e onde toda a gente é empregada) o trabalho é uma ocupação e é “salariato”, o que quer dizer que tenho que te vender ao “Plano”. No entanto, 95% dos americanos que trabalham fazem-no para alguém. Na defunta URSS ou na actual Cuba, ou em qualquer outra experiência do “socialismo de Estado”, o qual necessita da força da adulação, o número dos empregados aproxima-se dos 100%.

Enquanto os camponeses do denominado “terceiro mundo” — no México, Brasil, Turquia — se dedicam à agricultura, uma tradição que dura há muitos milénios, todos os que trabalham na indústria e nos escritórios são empregados que estão bem vigiados. Pagamos impostos ao Estado e renda aos senhorios para podermos adquirir o sossego. Este é, aliás, um negócio que continua de vento em popa.

Todavia, o trabalho moderno tem muito piores implicações. As pessoas não só trabalham como têm tarefas. Cada um tem uma tarefa a cumprir, o que equivale a produção diária. Mesmo quando a tarefa não nos dá muito que fazer (o que praticamente não acontece), a monotonia da sua obrigatoriedade esgota a nossa potencialidade de divertimento. O emprego significa o aluguel das energias de uma pessoa por um limite de tempo razoável. E por mais engraçada que a tarefa seja, aquilo que tem de ser feito durante quarenta horas por semana, já não falando das condições em que tem de ser executado, é somente um fardo. O objectivo são os lucros dos proprietários que não contribuem em nada para o projecto. Isto é o verdadeiro mundo do trabalho: um trabalho burocraticamente impudente, sexualmente devastador e discriminatório, com os chefes cabeças ocas a explorar e a escapar dos seus subordinados, se for caso disso, bem entendido. O capitalismo na vida real suborna aquele que mais produz por exigência dum controlo central.

A degradação que muitos trabalhadores experimentam é a condição imposta pela denominada “disciplina”. Foucault classificou, de modo simples e satisfatório, este fenómeno de “complexado”. A disciplina consiste na totalidade do tempo estipulado no emprego. Por outras palavras, cumprir sem sem ficar isento da vigilância do trabalho corrompido, do trabalho forçado, da produção contigente, etc. A disciplina é aquilo que a fábrica, o escritório e a empresa partilha com a prisão, a escola e o hospital psiquiátrico. É uma coisa historicamente original e terrível. Muito para além das capacidades de alguns ditadores demoníacos como Nero, Gengis Khan e Ivan “o terrível”. Para todos os seus maléficos propósitos, nunca dispuseram do mecanismo para o controlo dos seus súbditos tão perfeito como aquele de que dispõem os modernos déspotas. Disciplina é o diabólico modo moderno de controlo. É uma inovadora intrusão que necessita de ser interditada na primeira oportunidade.

O divertimento é o oposto do trabalho.

O divertimento é sempre voluntário. Quando é forçado, é trabalho. É axiomático. Bernie de Koven definiu o divertimento como uma “suspensão de consequências”. O que não é aceitável se significar que o divertimento não tem consequências. Jogar e dar são hermeticamente relativos, são procedimentos e facetas transaccionais do mesmo impulso, o instinto do divertimento. Ambos partilham um desprezo aristocrático pelos resultados. O jogador ganha alguma coisa quando joga. É por isso que ele joga. Mas o prémio é a experiência obtida pela actividade — seja ela qual for. Alguns estudantes atentos ao divertimento, como Johan Huizinga (Homo Ludens) definem o jogo como uma acção onde se seguem regras. Respeito a erudição de Huizinga, mas rejeito os seus constrangimentos. Há inúmeros bons jogos — xadrez, basquetebol, monopólio, “bridge” — que têm regras, porém, existe no divertimento muito mais coisas do que aquilo que existe nesses jogos. Preservação, sexo, dança, viagens — estas práticas não possuem regras mas não deixam por isso de poderem ser divertimento. Podemos jogá-las com regras, mas, pelo menos, sem ser imperioso estabelecê-las com antecedência.

O trabalho troça da liberdade. O perfil oficial é que todos temos direitos e vivemos em democracia. Outros infelizes que não dispõem das mesmas liberdades que a nós se dispensa, são obrigados a viver num Estado omnipotente e inquisidor. Estas vítimas obedecem a ordens, não importa a sua arbitrariedade. A autoridade conserva-as debaixo de uma apertada vigilância. O Estado controla até ao mais pequeno pormenor a vida de cada um. Os informadores fazem regularmente relatórios para as autoridades. Os guardas encarregues do controlo somente entregam os seus relatórios aos superiores, sejam “públicos” ou “privados”. A dissidência e a desobediência são punidas. Tudo isto é suposto ser uma má coisa.

Obviamente que é de fato péssimo e trágico viver em semelhante sociedade. Todavia, o que acabámos de relatar é também a descrição do emprego moderno. Os liberais, conservadores e “libertarianos” que se queixam do totalitarismo são fonéticos e hipócritas. Existe tanta liberdade numa moderada ditadura desestalinizada como num ordinário local de trabalho americano. A hierarquia e a disciplina no escritório ou na fábrica é idêntica àquela que encontramos na prisão ou num convento. Na verdade, como Foucault e outros mostraram, prisões e fábricas nasceram ao mesmo tempo e os seus membros imitam conscientemente as técnicas de controlo um do outro. Um trabalhador é um escravo temporal. O patrão determina as horas a que tens de entrar, quando é que tens de sair e o que tens de fazer durante esse espaço de tempo. Ele decide a quantidade de trabalho que tens de fazer e a rapidez em que o realizas. Ele é livre para te controlar, até para te humilhar, guiar e se ele achar necessário, escolhe a roupa que deves vestir ou quantas vezes poderás ir à casa de banho. Com algumas excepções, pode despedir-te com ou sem causa alguma. Ele tem os seus espiões e supervisores em cima de ti e possui um processo de cada trabalhador. E, se o trabalhador comete um acto de “insubordinação”, como se ele fosse uma criança má, não só o despede, como também o desqualifica para futuros empregos. É claro que as crianças recebem o mesmo tipo de tratamento em casa e na escola, justificado pela sua imaturidade.

O que dirão estas crianças sobre os seus pais e os professores que trabalham?

A maioria das mulheres e dos homens têm que estar acordados durante décadas das suas breves vidas para conquistarem os seus “salários-marmitas”. Não é ilusório denominar o nosso sistema de democracia, capitalismo ou melhor ainda de industrialismo, mas o seu verdadeiro nome é fascismo fábrica e oligarquia de ofício. Quem afirmar que estas pessoas são livres está a mentir ou é estúpido. Tu és aquilo que fazes. Se fazes coisas chatas, estúpidas ou monótonas, acabarás chato, estúpido e monótono. A existente rastejante “cretinização” é revelada pelo trabalho mais do que, inclusive, pelo triste mecanismo da televisão e da educação. Um povo que se encontra arregimentado, habilitado para o trabalho pela escola, colocado entre parêntesis pela família e finalmente no lar para a terceira idade, está habituado à hierarquia e psicologicamente escravizado. As suas aptidões à autonomia encontram-se tão atrofiadas que tem medo do que possa significar a liberdade. Cada membro desse povo transporta para dentro da família a sua treinada obediência no trabalho iniciando, deste modo, a reprodução do sistema em diferentes caminhos: políticos, culturais e outros.

Uma vez esvaziada no trabalho a vitalidade do povo, os indivíduos ficam aptos para se submeterem em todas as coisas à hierarquia e ao saber dos peritos. Uma vez submetidos, as pessoas estão prontas a serem usadas.

Estamos tão ligados ao trabalho que nem sabemos o mal que nos faz. Temos que confiar nos observadores exteriores de outros tempos ou culturas para apreciar a extremidade e a patologia da nossa presente atitude. Weber queria-nos comunicar alguma coisa quando referiu a semelhança existente entre o trabalho e a religião — o Calvinismo [4]. Passados quatro séculos, emerge hoje apropriadamente rotulado de culto. Teremos que trazer até nós a visão da antiguidade para colocar o trabalho na perspectiva exacta. Os nossos antepassados viam o trabalho tal como ele é. O capitalismo recebeu a bênção dos seus profetas.

Vamos pretender, por um momento, que o trabalho não nos prejudica. Vamos esquecer que o trabalho não afecta a formação do nosso carácter. Vamos fingir que o trabalho não é, nem chato, nem cansativo, nem humilhante. Mesmo assim, o trabalho irá troçar das nossas aspirações humanistas e democratas e ocupar muito do nosso tempo. Sócrates disse que o trabalho manual faz de nós maus amigos e maus cidadãos porque não temos tempo para cumprir as responsabilidades da amizade e da cidadania. Ele tinha toda a razão. Por causa do trabalho, pouco importa o género ou tipo, estamos sempre a olhar para o relógio. A única coisa “livre”, a que chamamos “tempo livre”, é o tempo que nada custa ao patrão. Aquilo a que designamos “tempo livre” é, a maior parte das vezes, o momento em que nos preparamos para voltar, ir e retomar ao trabalho e dele recuperar. “Tempo livre” é eufemismo, considerando o fator produtivo. Não só as despesas de transporte, como também o tempo que levamos para chegar ao trabalho, são despesas que nós suportamos e tempo gratuito que nos é roubado. Não foi por acaso que Edward G. Robinson, num dos seus filmes de “gangsters”, exclamou: “O trabalho é para os ‘marrões’!”.

Platão e Xenofonte atribuem a Sócrates, e obviamente partilham com ele, a opinião de que o trabalho provoca efeitos destrutivos no trabalhador como cidadão e ser humano. Heródoto identificou a desobediência ao trabalho como uma contribuição da cultura clássica Grega no seu mais feliz momento. Cícero declarou que “quem trabalha por dinheiro vende-se e coloca-se na categoria de escravo”. A sua candura hoje é rara. No entanto, as sociedades primitivas contemporâneas que costumamos olhar de cima produziram porta-vozes que esclareceram os antropólogos do Ocidente. Nas palavras de Pospisil, os Kapauku do Oeste do Irian têm um sentido de equilíbrio na vida. Por isso, só trabalham dia sim, dia não, sendo o propósito do dia de “folga” o de “recuperar a energia e a saúde perdidas”. Os nossos antepassados, ainda no século XVIII, embora já estivessem bem avançados no caminho para a nossa realidade de hoje, pelo menos tinham consciência daquilo que nós esquecemos e que é o ponto vulnerável da industrialização. A sua devoção religiosa à “Segunda-Feira Santa”, que deste modo estabelecia a semana dos cinco dias (150 a 200 anos anteriormente à sua consagração na lei), foi o desespero dos donos das primeiras fábricas. Resistiram durante muito tempo ao toque do sino, o antecessor do relógio de ponto. De fato, foi preciso substituir, ao longo de uma geração ou duas, os homens adultos por mulheres habituadas à obediência e crianças que era possível moldar a condizer com as necessidades da indústria. Mesmo os camponeses explorados do “antigo regime” conseguiram recuperar uma parte substancial do trabalho que pertencia aos seus senhorios. Segundo Lafargue, 1/4 do calendário dos camponeses de França eram domingos e feriados. E as figuras de Chayanov das aldeias da Rússia Czarista (as quais não constituíram exactamente uma sociedade progressista) demonstram igualmente que 1/4 ou 1/5 dos dias do campesinato eram dedicados ao repouso. Os Mujiques admirar-se-iam com o fato de nós só trabalharmos. E nós deveríamos fazer o mesmo.

Para entendermos a enormidade do estrago, proponho que consideremos as antigas condições humanitárias quando o homem vadiava como caçador numa sociedade sem governo, ou sem dono de património. Hobbes suspeita que a vida era uma luta constante pela (sobre)vida, uma vida imunda, bruta e curta. Uma guerra furiosa contra a natureza áspera e com a morte a aguardar os mais fracos ou aqueles que não são capazes de enfrentar a luta. Na actualidade isto é usado para meter medo às comunidades para que não se habituem a viver sem governantes. Tal como acontecia na Inglaterra de Hobbes, num período de guerra civil, quando este escreveu, em 1657, “Leviathan, or the Matter, Form and Power of a Commonwealth” (Leviatão, ou a matéria, forma e poder do Estado). Os compatriotas de Hobbes tinham encontrado formas alternativas de vida, particularmente na América do Norte, mas a compreensão de outras maneiras de viver era muito remota.

(As classes mais desfavorecidas, aqueles que se encontravam mais próximos das condições dos aborígenes da América do Norte, compreenderam-nas melhor e acharam-nas atractivas. No século XVII, os ingleses que desertaram ou que tinham sido capturados, recusaram retomar ao seu país de origem.) “A sobrevivência do mais forte” — a versão de Thomas Huxley do Darwinismo — era uma avaliação muito mais correcta sobre a realidade da situação económica na Inglaterra Vitoriana do que a da selecção natural, uma evolução facultativa, como Kropotkine provou no seu livro “A Ajuda Mútua”. Kropotkine sabia o que estava a dizer. A sua condição de cientista geógrafo e a oportunidade involuntária para realizar esses estudos quando foi exilado na Sibéria, permitiram essa prova científica. Como algumas teorias sociais e políticas referem, a história que Hobbes e os seus antecessores contaram foi, na realidade, uma autobiografia irreconhecível.

No artigo intitulado “The Original Affluent Society” (Idade da Pedra, Sociedade da Abundância), o antropólogo Marshall Sahlins ao estudar os colectores de caça fez explodir o mito Hobbesiano. Os colectores de caça trabalham muito menos do que nós. Além disso, é difícil distinguir esse trabalho daquilo que nós consideramos hoje como divertimento. Sahlins diz que o “trabalho” dos caçadores e colectores em busca de alimento é intermitente e melhor do que o trabalho permanente. O descanso é abundante. Ao contrário da maioria de nós, dormem durante o dia. O trabalho que fazem — trabalham uma média de 4 horas por dia e supondo que aquilo que fazem é aos nossos olhos trabalho —, são esforços que parecem ser efectuados com habilidade e que provocam a evolução da capacidade física e intelectual. O trabalho indiferenciado em grande escala, como disse Sahlins, é impossível. Este tipo de trabalho (como modernamente também se designa, não qualificado), só se tomou possível com a industrialização.

Assim, a definição de Friedrich Schiller sobre o divertimento, é satisfatória. Para ele, o divertimento é a única ocasião em que o Homem realiza a sua capacidade humanitária ao dar pleno “divertimento” a ambas as partes da sua dupla natureza: pensar e sentir. Como ele afirmou, “o animal só trabalha quando necessita de alimentos e diverte-se quando satisfaz essa necessidade”. (Uma versão moderna, de Abraham Maslow — indecisamente crescente —, é a contraposição entre a deficiência e a motivação da produtividade). Divertimento e liberdade são, aos olhos da produção, objectos que se fundem um no outro.

Mesmo Marx, que pertence (por todas as suas boas intenções) ao panteão produtivo, observou que o domínio da liberdade não principia enquanto o trabalho sob a coação da necessidade e da utilidade externa existir. Nunca chegou a conduzir claramente esta afortunada circunstância, à abolição do trabalho. É um pouco anómalo, afinal, ser pró e anti-trabalhador, mas nós podemos sê-lo. A aspiração para ir atrás ou à frente na vida é evidente em qualquer sociedade ou na história cultural da pré-indústria europeia, como o testemunha entre outros, M. Dorothy Georges na sua “England in Transition” (Inglaterra em Transição) e Peter Burke, no seu “Popular Culture in Early Modern Europe” (Cultura Popular no Início da Europa Moderna).

Também pertinente é o ensaio de Daniel Bell “Work and Its Discontents” (O Trabalho e os seus Descontentamentos), o primeiro texto, penso eu, que refere a revolta contra o trabalho. E, em tantas palavras, que se fossem compreendidas tornar-se-iam uma correcção importante ao volume onde se encontram reunidas, “O fim da ideologia”. Nem os críticos, nem os sacerdotes repararam que “O fim da ideologia” de Bell, não quer dizer o fim da inquietação social, mas sim, o princípio de uma nova fase não constrangida e ignorante da ideologia. Foi Seymour Lipset, não Bell, que anunciou, ao mesmo tempo, no seu livro “Political Man” (Homem Político), que “os problemas fundamentais da revolução industrial foram resolvidos”.

Como Bell realçou, a “The wealth of Nations” (A riqueza das nações) de Adam Smith, para além do seu evidente entusiasmo com o mercado e a divisão do trabalho, presta mais atenção ao pior lado do trabalho do que Ayn Rand ou os economistas de Chicago, ou qualquer outra referência moderna de Smith. Adam Smith observou que a compreensão da grande maioria dos homens é formada no local de emprego. “O homem que passa a sua vida executando funções (...) geralmente torna-se estúpido e ignorante, tão e mais estúpido e ignorante, quanto aquilo que o ser humano pode ser”. Aqui, em poucas palavras, está a minha crítica do trabalho.

Em 1956, Bell identificou, na época dourada da imbecilidade de Eisenhower e da auto-satisfação americana, o não organizado, o não organizável e o mal estar dos anos 70 e, desde então, tudo aquilo que não se pode explorar é ignorado. E, uma das coisas que frequentemente se ignora é a revolta contra o trabalho. Não figura em nenhum texto escrito por economistas, tais como Milton Friedman, Murray Rothbard, Richard Posner porque, do ponto de vista destes senhores, a questão, como é costume ser afirmado no “Star Trek”, “não conta”.

Se estas objecções, feitas por amor à liberdade, não persuadiram os humanistas da urgência de mudança, há outras que não podemos menosprezar.

O trabalho é perigoso para a tua saúde. Na verdade, o trabalho é homicídio de um povo ou assassínio de uma comunidade. Directamente ou indirectamente, o trabalho irá matar a maior parte dos trabalhadores. Todos os anos morrem na USA, entre catorze mil e vinte e cinco mil trabalhadores vítimas de “acidentes” no trabalho e mais de dois milhões ficam deficientes. Registe-se que estes algarismos são estabelecidos por uma estimação conservadora, o que constitui uma aproximação insultuosa. Portanto, não calculam meio milhão de casos de doenças originadas anualmente por via do trabalho. Dei uma vista de olhos num livro de medicina, com cerca de 1200 páginas, sobre doenças ocupacionais. O que desse livro retirei foram raspas superficiais. A estatística conta com casos evidentes, como os cem mil mineiros com doenças nos pulmões e dos quais quarenta mil morrem todos os anos. Uma fatalidade superior à sida [Nota: sida é o mesmo que AIDS — a tradução deste texto é de Portugal], por exemplo. Isto pode fazer-nos reflectir se tomássemos em conta a pretensão de alguns, quando se diz que a sida aflige particularmente os sexualmente pervertidos e que estes deveriam controlar os seus vícios. Porém, a actividade do mineiro é sacrossanta. O que a estatística não revela é o número de pessoas, mais de dez milhões, que têm as suas vidas encurtadas pelo trabalho. E isto é, portanto, homicídio. Pensamos nos médicos que se matam a trabalhar até aos 50 anos. Pensamos em todos aqueles que trabalham até à morte.

Mesmo que não morras, ou não fiques inválido dentro do trabalho, vais com todas as tuas forças trabalhar, voltar do trabalho, procurar trabalho, ou tentar esquecer o trabalho. A maioria destas pessoas são vítimas do automóvel e fazem disso uma actividade obrigatória. Temos também que contar com a poluição industrial, o alcoolismo e outras drogas e vícios que o trabalho incentiva. O cancro e as doenças de coração são modernas aflições, muitas das vezes provocadas directa ou indirectamente pelo trabalho.

Assim, o trabalho institucionaliza a nossa maneira de viver. As pessoas pensam que os cambojanos (e mais recentemente os habitantes do Ruanda, por exemplo) eram malucos quando se exterminavam uns aos outros, mas será que somos diferentes? Matamos pessoas a trabalharem para podermos vender (outro exemplo) “Big Macs” e “Cadillacs”, aos sobreviventes. As nossas quarenta ou cinquenta mil pessoas que anualmente sofrem acidentes são vítimas, não mártires. Morreram por nada, ou morreram pelo trabalho. Contudo, o trabalho não é algo pelo qual valha a pena morrer.

Más notícias para os liberais: brincarmos às regulamentações é inútil neste contexto de vida e morte. A intenção era que a governamental “Occupational Health and Safety Administration” policiasse o cerne do problema, que é a segurança no local de trabalho. Mesmo antes de Reagan e o Tribunal Supremo a sufocarem, a OHSA era uma farsa. Com os níveis orçamentais da era Carter, anterior e “generosa”, (em termos contemporâneos), um local de trabalho podia esperar a visita de um inspector da OHSA uma vez em cada quarenta e seis anos.

O controlo da economia por parte do Estado não é solução. O trabalho é, (se ele é alguma coisa), muito mais perigoso nos estados socialistas do que aqui. Milhares de trabalhadores russos morreram ou ficaram feridos na construção do metro de Moscovo. Há histórias decorrentes sobre desastres nucleares soviéticos que foram abafados e que fazem parecer Times Beach e Three Mile Island exercícios anti-aéreos de escola primária. Por outro lado, a desregulamentação que está na moda nos dias que correm não fará melhor e provavelmente irá doer. Do ponto de vista da saúde e da segurança, por exemplo, o trabalho atravessou a sua fase mais tenebrosa nos dias em que a economia mais se aproximou do laissez-faire. Historiadores como Eugene Genovese afirmaram de forma persuasiva que os trabalhadores de fábrica assalariados da América do Norte e da Europa estavam numa pior situação do que os escravos das plantações do Sul. Do ponto de vista da produção, qualquer novo arranjo das relações entre burocratas e homens de negócios pouca diferença parece fazer.

Uma tentativa séria de impor até os padrões bastante vagos que teoricamente podem ser impostos pela OHSA, provavelmente iria provocar o colapso da economia. Aparentemente, aqueles que os deveriam impor sabem disso, visto que nem sequer tentam interceder junto da maior parte dos infractores.

O que até aqui disse não deve ser controverso. Muitos trabalhadores estão fartos do trabalho. Há altas e crescentes taxas de absentismo, desacatos, roubos e sabotagens praticados por empregados, greves selvagens e uma tendência generalizada para “rentabilizar” o trabalho ao máximo. Talvez estejamos a encaminhar-nos em certa medida para uma rejeição consciente e não apenas visceral do trabalho. E mesmo assim, a impressão dominante, generalizada entre os patrões e os seus agentes, mas também muito divulgada entre os trabalhadores, é que o trabalho é inevitável e necessário.

Eu discordo. É hoje possível abolir o trabalho e substitui-lo, na medida em que sirva para fins positivos, por uma panóplia de actividades de um tipo novo. A abolição do trabalho requer uma abordagem sob dois pontos de vista distintos. O quantitativo e o qualitativo. No que diz respeito ao aspecto quantitativo, temos de reduzir drasticamente a quantidade de trabalho que está a ser feita. Presentemente, a maior parte do trabalho é inútil ou pior do que isso, por conseguinte, deveríamos simplesmente ver-nos livres dele. Por outro lado — e penso que este é o cerne da questão e o novo ponto de partida revolucionário —, teremos que agarrar no que é importante fazer e transformar essa actividade numa agradável variedade de divertimento, arte e passatempo. Não se distinguindo de outros prazeres, excepto que eles acontecem para chegar a produtos finais úteis. Certamente esse pormenor não os deverá tornar menos atractivos. Aí todas as barreiras artificiais do poder e da propriedade poderão cair. A criação poderá tornar-se recriação. E todos nós poderemos deixar de ter medo uns dos outros.

Não estou a sugerir que muitos trabalhos possam ser salvos desta maneira. Por outro lado, não vale a pena salvar a maioria deles. Hoje, só alguns trabalhos servem para alguma coisa e — independentemente da defesa e reprodução do sistema de trabalho —, só uma fracção reduzida do trabalho realizado serve um propósito útil.

Há trinta anos atrás, Paul e Percival Goodman avaliaram em somente 5% o trabalho realizado — e se a estimativa for correcta agora, a percentagem diminuiu — cobrindo as nossas necessidades de alimento, vestuário e abrigo. Estas estimativas são somente uma adivinha de intelectuais, mas o ponto fiável está claro: directamente ou indirectamente, muitos trabalhos servem um desígnio improdutivo de comércio ou controlo social. Podemos libertar milhares de vendedores, soldados, gerentes, bófias, corretores, padres, banqueiros, advogados, académicos, senhorios, guardas e todos aqueles que trabalham para eles.

Quarenta por cento destes trabalhadores são brancos e a maioria faz trabalhos fastidiosos e estúpidos que jamais em tempo algum foram forjados. Todos concordarão que inúmeras companhias de indústria, de seguros, da banca, de habitações, por exemplo, não servem para nada a não ser para um enredo de papelada, um extraordinário aumento das fortunas privadas de alguns e servirem a uma minoria privilegiada de “polícia social”. Não é um acidente que o chamado terceiro sector (serviço público) estagna e o sector primário (agricultura) está em vias de desaparecer. E, como o trabalho não é necessário — excepto para aqueles que nele mandam — os trabalhadores são deslocados do relativamente útil para uma ocupação inútil. Para desta maneira assegurarem “a ordem pública”. Qualquer coisa é melhor do que nada. É por isso que não podes ir para casa só porque acabaste mais cedo o trabalho. Eles querem o tempo que compram, o suficiente para que tu sejas propriedade deles, mesmo que dele não necessitem. De outro modo, como se compreenderá que o tempo de trabalho não tenha sensivelmente diminuído nos últimos cinquenta anos?

Da próxima vez vamos levar para o trabalho de produção um carniceiro esperto. Acaba a produção de guerra, o poder nuclear, os alimentos de plástico e os desodorizantes higiénicos e, sobretudo, a indústria automóvel sobre a qual vale a pena falar. Um automóvel ocasional Stanley Steamer ou o Model T pode servir, mas os carros eróticos de que as bestas de Detroit e de Los Angeles dependem, está fora de questão. Sem mesmo o tentarmos, já resolvemos praticamente a crise energética, a crise ambiental e equacionámos outros problemas sem solução aparente.

Finalmente, temos que acabar com o trabalho onde as horas de laboração são de longe as mais cumpridas, as mais mal pagas e do mais enfadonho que há por aí. Estou também a referir-me às donas de casa que fazem o trabalho de casa e tomam conta das crianças, enquanto o marido está a trabalhar. Abolindo o trabalho assalariado e realizando o desemprego total, podemos destruir a divisão sexual da lida doméstica. Como sabemos, a família nuclear é uma adaptação inevitável imposta pelo regime do “salariato” para a divisão do trabalho. Quer tu gostes ou não, tal como as coisas se têm passado durante o último século, ou dois, é economicamente razoável para o homem levar para casa o toucinho e para a mulher fazer o trabalho sujo oferecendo ao homem um céu num mundo desprovido de coração. Ao mesmo tempo, as crianças são arrebanhadas para campos de concentração de jovens chamados “escolas”. Primeiramente, para as manter afastadas das saias das mães, mas, no fim de contas, para adquirirem o hábito da obediência e da pontualidade que tanto jeito fazem a um trabalhador. Porém, se estás com a pretensão de te desembaraçares do patriarcado, procura desembaraçar-te da família nuclear, cujo trabalho de sapa sem direito a salário, na opinião de Ivan Ilich, viabiliza o sistema do trabalho que o torna necessário. O que acompanha esta estratégia anti-nuclear é a abolição da infância e o encerramento das escolas. Neste país existem mais estudantes do que trabalhadores a tempo inteiro. Precisamos das crianças como professores e não como estudantes. As crianças têm muito a contribuir para a revolução lúdica porque sabem brincar melhor que os adultos. Os adultos e as crianças não são idênticos, mas pela interdependência acabarão por tornar-se iguais. Só a brincadeira pode lançar a ponte sobre o abismo que separa as gerações.

Ainda não mencionei sequer a possibilidade de reduzir drasticamente o pouco trabalho que resta através da automatização e da cibernética. Todos os cientistas, engenheiros e técnicos, uma vez dispensados de se preocuparem com a investigação bélica e a necessidade de os seus produtos se tornarem obsoletos, deverão divertir-se a descobrir meios de eliminar a fadiga, o tédio e o perigo de actividades, tais como o trabalho mineiro. Sem dúvida, encontrarão outros projectos para se divertirem. Talvez venham a construir sistemas de comunicação multimédia à escala global e acessíveis a toda a gente, ou a fundar colónias no espaço. Talvez. Eu próprio não sou entusiasta das coisas inúteis. Eu não gostaria de viver num paraíso de carregar no botão. Não quero que escravos robotizados façam tudo; também eu quero fazer coisas. Na minha opinião, há um lugar para a tecnologia que economiza o trabalho, mas esse lugar é de pequenas dimensões. Os registos históricos e pré-históricos não são propriamente animadores. Quando a tecnologia de produção passou da caça e recolha para a agricultura, e daí para a indústria, o trabalho aumentou, ao passo que as habilidades e autodeterminação decresceram. O desenvolvimento ulterior da industrialização tem acentuado o que Harry Braveman chamou a degradação do trabalho. Os observadores inteligentes sempre se deram conta disso. John Stuart Mill escreveu que todas as invenções alguma vez delineadas para reduzirem a mão de obra nunca pouparam um momento de trabalho que fosse. Karl Marx escreveu que “seria possível escrever um historial das invenções feitas desde 1830 com o único propósito de fornecer o capital com armas contra as revoltas da classe operária”. Os entusiastas da “tecnofilia”, tais como Saint-Simon, Comte, Lénine, B.F.Skinner também foram autoritários a toda a prova, ou seja, tecnocratas. Deveríamos ser mais do que cépticos no que diz respeito às promessas dos místicos computacionais. Eles trabalham como cães e algo me diz que, se for por eles, o mesmo acontecerá a nós outros. Mas caso eles tenham quaisquer contribuições particulares mais prontamente subordinadas às necessidades humanas que à corrida à alta tecnologia, porque não dar-lhes ouvidos?

O que eu gostaria realmente de ver acontecer é a transformação do trabalho em jogo. Um primeiro passo será descartarmos as noções de “emprego” e “ocupação”. Mesmo as actividades que já tenham algum teor lúdico perdem a maior parte deste ao serem reduzidos a empregos que certas pessoas, e apenas essas pessoas, são obrigadas a executar sem poderem fazer mais nada na vida. Não será esquisito que os operários agrícolas se esfarrapem a trabalhar nos campos, ao passo que os seus amos com ar condicionado vão para casa todos os fins de semana dedicarem-se à “bricolage” nos jardins respectivos? Num sistema de festa permanente veremos a idade áurea do diletante que fará o Renascimento empalidecer com vergonha. Não haverá mais empregos, apenas coisas para fazer e pessoas para as fazer.

Como Charles Fourier demonstrou, o segredo da transformação do trabalho em brincadeira consiste em fazer com que nas actividades úteis se aproveite tudo o que várias pessoas em alturas várias realmente gostam de fazer. Para possibilitar que algumas pessoas possam fazer as coisas de que gostem será suficiente erradicar as irracionalidades e distorções que conspurcam essas actividades quando elas são reduzidas a trabalho. Eu, por exemplo, gostaria de ensinar um bocado (não em demasia), mas não quero estudantes compulsivos, nem gosto de lamber as botas a pedantes patéticos para assegurar um ganha pão.

A seguir há um par de coisas que as pessoas gostam de fazer de vez em quando, mas não por demasiado tempo, e certamente não todo o tempo. Você pode ter gosto em tomar conta de crianças por umas horas para estar na companhia delas, mas não tanto como os pais das mesmas. Ao mesmo tempo os pais apreciam profundamente o tempo para eles próprios que você Ihes proporciona, embora ficassem inquietos se fossem separados da sua prole por demasiado tempo. São estas diferenças entre os indivíduos que tomam possível uma vida de jogo livre. O mesmo princípio aplica-se a muitas outras áreas de actividade, com relevo para as mais fundamentais. Assim, muitas pessoas gostam de cozinhar quando se dedicam seriamente a essa actividade nos seus tempos livres, mas não acontece o mesmo quando o fazem apenas para reabastecer corpos humanos para o trabalho.

Terceiro, e enquanto as outras coisas se mantenham inalteradas, algumas actividades que são insatisfatórias se forem exercidas por você mesmo, ou num ambiente desagradável, ou às ordens de um dono, tomam-se aprazíveis, ao menos por algum tempo, se essas circunstâncias forem alteradas. O mesmo irá provavelmente aplicar-se, até certo ponto, a todo o tipo de trabalho. Há quem multiplique a sua ingenuidade, geralmente desperdiçada, para transformar, o melhor possível, os trabalhos de estafa menos convidativos num jogo.

As actividades que atraem alguns, nem sempre atraem os outros, mas qualquer pessoa tem, no mínimo em potência, uma variedade de interesses e um interesse na variedade. “Tudo ao mesmo tempo agora”, como quem diz. Fourier foi quem levou mais longe a especulação sobre as possibilidades de tirar proveito de expedientes aberrantes e perversos na sociedade pós-civilizada. A isso chamou “Harmonia”. Segundo ele, o imperador Nero teria acabado por ser uma boa pessoa se, em criança, tivesse saciado o seu gosto pela carnificina trabalhando num matadouro. Crianças pequenas em que fosse notório o gosto em chafurdarem na porcaria poderiam ser agregadas em “pequenas hordas” para limpar as casas de banho e despejar o lixo, sendo os mais destacados agraciados com medalhas. Não defendo precisamente estes exemplos, mas sim o princípio em que se fundamentam, o qual me parece fazer muito sentido, como uma das dimensões de uma transformação revolucionária global. Não nos esqueçamos do pormenor que não é necessário pegarmos no trabalho tal como ele é hoje e dotarmo-lo com as pessoas certas, algumas das quais teriam de ser, sem dúvida, pervertidas. Se a tecnologia é para aqui chamada é menos para automatizar o trabalho até à sua inexistência, do que para abrir novos espaços para a (re)criação. Até certo ponto, poderemos querer voltar ao artesanato, o que William Morris considerou ser um resultado provável e desejável de uma revolução comunista. Assim, a arte seria recuperada das mãos dos “snobs” e coleccionadores, seria abolida enquanto departamento especializado ao serviço de um público de elite e as suas qualidades de beleza e criatividade seriam devolvidos à vida plena da qual foram subtraídos pelo trabalho. É elucidativo lembrarmo-nos do fato que os vasos gregos aos quais escrevemos odes e que exibimos em vitrinas de museu foram usados, no seu tempo, para guardar o azeite. Duvido que os nossos artefatos do dia a dia tenham um futuro assim tão glorioso, se é que têm algum. O que se passa é que não há nada a que se possa chamar progresso no mundo do trabalho; se houver alguma coisa, será precisamente o contrário. Não devemos fazer-nos rogados para surripiarmos ao passado aquilo que ele tem para nos oferecer, visto que os antigos não perdem nada e nós saímos enriquecidos.

A reinvenção da vida quotidiana pressupõe o transpormos os limiares dos nossos mapas. Em boa verdade, existem mais obras especulativas sugestivas do que a maioria das pessoas supõe. Para além de Fourier e Morris — e até umas amostras, aqui e ali, em Marx —, há ainda os escritos de Kropotkine, os sindicalistas Pelloutier e Pouget, anarco-comunistas antigos (Berkman) e contemporâneos (Bookchin). A “Communitas” dos irmãos Goodman é o exemplo acabado para ilustrar as formas que derivam de dadas funções (fins), e também há qualquer coisa para aprender com os arautos tantas vezes nebulosos da tecnologia alternativa — apropriada intermédia-convivencial, tais como Schumacher e especialmente Illich, uma vez que o leitor consiga desactivar os seus canhões de nevoeiro. Os situacionistas, tais como se encontram representados na Revolução da Vida Quotidiana de Vaneigem e na Antologia da Internacional Situacionista, são impiedosamente lúcidos, ao ponto de se tornarem hilariantes, mesmo que nunca tenham equacionado devidamente a continuidade do mando dos conselhos de trabalhadores no contexto da abolição do trabalho. No entanto, mais vale a incongruência destes do que qualquer versão existente do esquerdismo, cujos devotos se esforçam por serem os últimos heróis do trabalho, visto que, se não existisse o trabalho também não haveria trabalhadores e, sem trabalhadores, quem restava para a esquerda organizar?

Assim, os abolicionistas ficariam em grande medida por sua conta. Ninguém pode vaticinar o que iria resultar se fossem dadas largas ao potencial criativo bestificado pelo trabalho. Tudo pode acontecer. O problema da liberdade versus necessidade, objecto de debates infindáveis, com o seu pano de fundo teológico, resolve-se na prática, uma vez que a produção de valores utilitários tenha nas nossas vidas um espaço correspondente ao da consumação de uma actividade jocosa repleta de deleite.

A vida tornar-se-á um jogo, ou antes, muitos jogos, mas não o que é hoje — um jogo de “monopólio”. Um encontro sexual que corra pelo melhor é o paradigma do jogo produtivo. Os seus participantes potenciam mutuamente os prazeres, ninguém soma pontos e todos ficam a ganhar. Quanto mais deres mais recebes. Na vida lúdica, o que o sexo tem de melhor irá transvasar para a maior parte da vida quotidiana. A generalização da brincadeira conduz aos prazeres sensuais da vida. O sexo, em contrapartida, pode tornar-se menos obsessivo e desesperado, mas mais jocoso. Fazendo as cartadas certas, todos nós podemos receber mais da vida do que nela investimos, mas só se jogarmos à defesa.

Nunca ninguém deveria trabalhar. Trabalhadores de todo o mundo... descansem!

Notas

[1] Oblomovismo: comportamento de Oblomov, herói patético da novela de Goncharov. Autor que prefere contemplar e discutir o Universo, incluindo o seu próprio atributo, em vez de tomar parte activa na resolução dos seus próprios problemas e participar na vida. Stakhanovismo: uma ideologia na ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que tem por objectivo encorajar o trabalho duro e o mais rentável possível, seguindo assim o exemplo de Stakhanov, um mineiro dos anos 30 e 40, cujo padrão de produtividade ganhou fama.

[2] “No final da guerra inter-imperialista de 1939–45, nasceu nos Estados Unidos da América um novo libertário! Em linguagem “snob” dizem-se, se possível com uma ponta de sotaque californiano, os “libertarianos”. Esta corrente é essencialmente constituída por economistas que, tal como Milton Friedman, vão desenvolver as teorias de Oppenheimer contra a invervenção estatal na esfera económica. [...] É a partir da crítica do Estado-Providência que David Friedman dará uma definição do “libertarianismo”: A idéia central do “libertarianismo” é que as pessoas deveriam poder viver de acordo com os seus desejos. Rejeitamos completamente a idéia de que as pessoas devem ser protegidas à força contra elas mesmas” [...] Opondo-se a toda a intervenção estatal na esfera económica ou social são inimigos absolutos do socialismo de Estado. Estas tomadas de posição levaram os “libertarianos” a aliarem-se aos conservadores do Partido Republicano, sendo uma tal aliança justificada pela necessidade de uma união contra o comunismo mundial, e a de garantir o “laíssez faire” económico. A doutrina acaba, de fato, por conduzir a uma reinvenção, ou antes, a um aperfeiçoamento da sociedade capitalista. Aposta-se num deixar fazer total, por oposição a uma economia autoritariamente dirigida. [...] A guerra do Vietname e as revoltas estudantis favorecem, em 1969, a ruptura da aliança “conservadores-libertarianos”, apesar de alguns destes últimos apelarem ao voto nas eleições em que Reagan foi eleito. A partir desta ruptura, o movimento estruturou-se, originando, entre outros, o “Partido Libertário” que concorre em quase todas as eleições que animam a vida política norte-americana”. (M. Bakoufelier, in revista Maldição n.º 1 — 1986).

[3] “Quaaludic”: de quaalude, um cândido nome para o sedativo hipnótico “methaqualone”, conhecido na Europa por “Mandrax”.

[4] “Calvinismo”: religião fundada por J. Calvino — o terceiro homem da revolução protestante que nasceu em Noyon, perto de Paris, a 10 de julho de 1509. Pouco depois, influenciado pela reforma de Lutero, acreditou ter encontrado também evidentes contradições entre as “Sagradas Escrituras” e a teologia católica. Deste modo, em 1534 renunciou aos seus benefícios eclesiásticos e abandonou França para se refugiar na Suíça, onde escreveu “Da Instituição da Religião Católica”. Com a sua doutrina redigida lançou-se à acção em Genebra onde triunfava a rebelião de Zwinglio. Muito mais intransigente do que Lutero e Zwinglio, não aceitou, como estes o fizeram, situar a sua religião ao serviço do Estado. Aquilo que tentou foi submeter o Estado à sua religião e para isso apresentou-se como representante de Deus. Compreendendo que estavam ameaçados de cair debaixo da intransigência teocrática de Calvino, os habitantes de Genebra ergueram-se contra ele e expulsaram-no. Calvino retirou-se para Estrasburgo, cidade onde casou com uma viúva chamada Idelette de Bure. Entretanto, os seguidores de Calvino tinham conseguido impor-se em Genebra, o que permitiu este de entrar como vencedor na cidade, da qual foi um autêntico rei e senhor até ao dia da sua morte, em 1564. O reinado de Calvino foi um reinado de terror. Possuía vigilantes de bairro que denunciavam todos quantos se opunham ou mostravm reticências em aceitar o calvinismo. A lista das vítimas de Calvino foi interminável. Entre os quais recordemos a terrível morte na fogueira do médico espanhol Miguel Servet, que ousou polemizar com ele. Foi, no entanto, Calvino que deu à doutrina do trabalho toda a sua importância no pensamento e na vida cristã. Fez dela o fundamento de uma ética social que exercerá profunda e durável influência, na Suíça, nos Países Baixos, na Inglaterra, na Escócia e nos Estados Unidos da América. O mandamento do trabalho tem, para ele, uma autoridade particular pelo fato do “Criador”, ao promulgá-lo, se dar a si mesmo como exemplo. A ociosidade e a preguiça, assim como a blasfémia, são ofensas à majestade divina e é por isso que elas são “amaldiçoadas por Deus”. A doutrina de Calvino encontra-se exposta no livro acima citado.