Título: Indivíduo, comunidade, sociedade
Assuntos: anarquismo, Autonomia
Data: 1º de outubro de 1993
Fonte: Revista da Biblioteca Terra Livre - ano III, nº 4
Notas: Esse texto é a transcrição da intervenção de Eduardo Colombo na mesa “Individuo, Comunidad, Sociedad” no Seminário “El anarquismo ante la crisis de las ideologias”, realizada em Barcelona no dia 1º de outubro de 1993. Como o texto originalmente não tem título, decidimos intitulá-lo com o nome da mesa. (Nota dos Editores). Eduardo Colombo é médico, psicanalista e ex-professor de Psicologia Social da Universidad de Buenos Aires (UBA). Faz parte do comitê redator da revista Refráctions. Texto originalmente publicado no livro Anarquisme: Exposició Internacional, traduzido para o português por Pablo Pamplona.

Vou começar esse debate com uma pequena consideração antes de entrar em cheio no problema. O tema geral de nossos debates, nestes dois dias e meio, é “o anarquismo ante a crise das ideologias”; e para começar, um esclarecimento (talvez, se alguém quiser, poderemos discutir isso depois). Creio que a fórmula que se tem difundido depois dos anos 60, quando Daniel Bell, sociólogo norte-americano, escreveu seu livro sobre “O Fim das Ideologias”, é que as ideologias estão cada vez mais em crise, o que é absolutamente falso, se pensarmos em qual é o conceito genérico de ideologia. Pode-se dizer que está em crise, ou melhor, que se tem esgotado a força expansiva das utopias, ou das contra-ideologias revolucionárias, o que tem deixado de pé somente uma ideologia reinante: a ideologia dominante, a ideologia em que vivemos todos os dias; de onde se resulta o problema fundamental de nossa época, que é a passividade geral dos indivíduos frente ao reino absoluto da ideologia dominante.

Pode-se crer em certos momentos passados que frente ao capitalismo não havia nada mais que o capitalismo de Estado, e que nessa luta entre duas facções o anarquismo se encontrava em um terceiro campo, tratando de abrir um caminho diferente. Hoje se afirma que há uma só ideologia reinante e que nós sequer temos a possibilidade de abrir um caminho entre duas, mas que estamos de novo na base de uma luta frontal com uma única ideologia dominante.

Frente a essa situação e tendo definido a passividade individual como traço dominante de nossa sociedade, eu diria que para combater essa passividade se haveria que reivindicar, pôr de novo em primeiro plano, um direito inalienável do indivíduo, que é o direito à blasfêmia. Blasfemar é talvez o primeiro ponto de partida da rebelião contra a ordem estabelecida. E digo por duas razões que vocês verão depois. A primeira dessas razões é a própria definição de blasfêmia. Se buscarmos em um dicionário a palavra blasfêmia, lemos: expressão injuriosa contra Deus, ou a coisas sagradas. Evidentemente os dicionários amam citar autores mais ou menos clássicos e o dicionário que eu consultei põe como exemplo, “os homens hereges que depreciam toda dominação blasfemam a majestade”.

O que é a majestade? A majestade é o atributo inerente à realeza, pela qual se impõe respeito, admiração e submissão. A majestade se atribui aos reis ou soberanos e a Deus. Eu digo que frente a isso blasfememos.

Porque a possibilidade de blasfemar nos levará diretamente a tomar em consideração o elemento fundamental da situação humana que, em geral, se oculta dentro das instituições de domínio em que vivemos. Esse elemento oculto, por estar geralmente deslocado e concentrado na aparência formal do religioso, é o elemento sacral, do sagrado. O sagrado envolve de uma maneira direta, ou de origem com a ideia de pós-morte, de Deus, à palavra que vem de fora, do mandamento que nos foi imposto. O sagrado, se buscamos alguma definição reconhecida, pode ser entendido segundo Mircea Eliade, como uma definição positiva e violentada de Deus. Mircea Eliade diz que para um crente o Deus vivente não é o Deus dos filósofos, o Deus de um Erasmo, por exemplo, não é uma ideia, não é uma abstração, não é uma simples alegoria moral. É uma potência terrível, uma força que se manifesta na cólera divina, experiência aterrorizante e irracional. Todos os epítetos que seguem logo definindo o sagrado têm a ver com isso, com esse sentimento profundo do homem frente ao inexplicado, o sentimento de espanto frente ao sagrado, frente a esse misterium tremendum, frente a essa Majestade de que se emana uma superioridade esmagadora. Como vocês veem, todas essas definições nos despertam, como anarquistas, porque o sagrado é a força fundamental que esmaga o homem, esmaga-o porque o deixa submetido a uma potência exterior sobre a qual não se tem controle algum, pelo que é determinado, pelo que é criado, pelo que é definido, que é levado à morte ou até o fim. O sagrado é a essência da religião, mas também, e isso é importante, é o elemento base do Poder Político, da dominação, está oculto no Estado, está oculto nas instituições de domínio. Se buscarmos na etimologia a palavra hierarquia, por exemplo, vemos que vem do grego hieros (hierarchie em francês, jerarquía em espanhol). Hieros: sagrado; arquia, todo o mundo conhece a palavra anarquia, a saber – a: privativo de arkhé, que tem a ver com a ordenação política da sociedade. O elemento que está diretamente incrustado no Poder, o elemento sagrado, está no centro da relação entre indivíduo e sociedade, porque as sociedades são, desde sua origem até hoje, sociedades heterônomas, isto é, não existem sociedades autônomas, como não existem indivíduos totalmente autônomos, porque a relação entre sociedade e individuo é uma relação de interação permanente.

A problemática a que quero chegar é que essa heteronomia da sociedade é, pela própria definição, a consequência do sagrado, ou seja, as sociedades são heterônomas porque a lei, a norma, o costume, não estão organizados de dentro, pelos indivíduos que vivem em uma sociedade, mas sim estão organizadas desde o tempo mais remoto pelos antepassados mortos, pelos heróis, pelos Deuses, pelos que constituem um tempo primordial em que a lei foi ditada de uma vez para sempre, e os homens em seu tempo histórico não fazem mais que obedecer a uma minoria dominante, que é a representante na terra desse elemento sagrado posto há tempos, no altar do social.

O sagrado significa um desapossamento originário e fundamental da capacidade instituinte do homem. E agora entraremos mais claramente na definição de Poder. Nós utilizamos frequentemente a palavra poder com uma eficácia simbólica enorme e ao mesmo tempo com uma imprecisão praticamente total. Mas não porque nossa linguagem seja imprecisa, e sim porque a palavra poder contém, por um estratégia milenar do próprio Poder, uma contradição, ou talvez, poder-se-ia dizer, mais que uma contradição, elementos díspares que funcionam juntos e que são utilizados em função das necessidades da causa para dizer uma coisa ou seu contrário.

Quando dizemos poder, se o dizemos em uma assembleia anarquista, a primeira imagem que aparece é o Poder Político e sua dominação, o Estado, mas a palavra poder não quer dizer somente isso. Fundamentalmente, quer dizer capacidade, capacidade de fazer; pode-se fazer algo, nós juntos podemos fazer mais coisas, nós podemos fazer uma infinidade de coisas e uma das coisas que podemos fazer, e não somente podemos fazer, mas fazemos necessariamente, é nos darmos as normas e as leis com que vivemos.

É a própria sociedade e os homens que vivem nela que determinam quais são as formas institucionais e políticas de sua representação social, de sua interação social. É isso, não há outro Poder, Deus não existe. A partir desse ponto de vista, a heteronomia do social é o primeiro desapossamento, que faz crer aos homens que não são eles que organizam sua sociedade, os que ditam a lei, mas que há uma força exterior que os determina. Não importa como se chame essa força, não importa que seja o Deus das sociedades “primitivas”, ou algum antepassado nosso, não importa que seja o Deus das religiões positivas como o cristianismo ou o islamismo ou o judaísmo, não importa que seja o Estado, não importa que seja a lei da história, não importa que seja a crença que nos leva necessariamente a um fim predeterminado, a uma escatologia.

Ocorre o mesmo quando o marxismo em sua posição escatológica coloca o proletariado como o redentor da humanidade, e postula um fim que deve chegar necessariamente, e ao fazê-lo está desapossando do homem sua capacidade de dizer não, sim, para esse lado, para esse outro, para onde o quero, porque somos nós que organizamos nossa vida, os que organizam nossa sociedade. Esse elemento heterônomo que constitui o social está diretamente ligado à exploração, poder-se-ia dizer, ao desapossamento do homem de sua capacidade simbólico-instituinte. Eu chamarei de simbólico-instituinte essa capacidade de organizar a própria sociedade.

As sociedades se organizam em função de uma série de atribuições, de significados, de símbolos, de signos, de utilização de códigos que nós criamos. A linguagem é a primeira instituição da sociedade, o primeiro código com que organizamos nossa interação mútua, nossa intercompreensão a nível simbólico ou significativo. Essa instituição da linguagem foi criada pelos homens. Se tivesse sido dada de fora, eles estariam despossuídos dela. Essa definição da capacidade humana, social, instituinte, criadora da sociedade, é a essência do religioso que forma parte da dominação política.

E forma parte da dominação política pelo seguinte: porque o poder, quando é transmitido a partir do lado político, quando se constitui como Poder Político, é a dominação política; em uma sociedade heterônoma, será fundamentalmente a exploração de uma minoria, da capacidade simbólico-instituinte que corresponde ao total, ao coletivo global dessa sociedade. Enquanto aparecem nas sociedades humanas grupos especializados que detêm a possibilidade de ditar a lei, aparece um elemento particular Indivíduo, comunidade, sociedade pelo qual o Poder Político deixa de ser a capacidade global, do grupo humano, para converter-se na capacidade de uma minoria de impor aos outros – à maioria – sua decisão. Ou seja, que a capacidade de manusear o mundo, as relações com os outros, a criação sócio-histórica, se transforma na capacidade de uns, de alguns, de poucos, de uma oligarquia, para impor aos outros a obediência.

Na medida em que essa transformação aparece na sociedade, constitui-se o que chamamos de Poder Político; nós o reproduzimos, como eu dizia há pouco, na palavra poder, porque, por exemplo, se alguém diz a uma criança: – Não pode subir na mesa! – bem, ela me perguntará – Como não posso se eu já subi? Não, não pode subir significa que não deve subir na mesa, que o dever está incluído na concepção de poder. Por quê? Porque essa mesma heteronomia do social incrusta na definição de poder esse elemento de exterioridade, do dever de obediência.

E como não tenho muito tempo, sobre esse aspecto me contentarei em mostrar de que maneira o dever de obediência é um dos aspectos centrais da dominação política, ou das sociedades hierárquicas. A sociedade não é, como ingenuamente costuma-se dizer, algo que se opõe ao indivíduo. O indivíduo pode sentir a sociedade como que lhe opondo uma resistência ao que ele deseja, mas esse sentimento é subjetivo e alheio a uma compreensão real das relações entre os homens. Vou me basear nisso, apesar de haver uma larga bibliografia sociológica, sociopolítica, que poderia ser utilizada para explicar esse tema, e já que estamos entre anarquistas vou utilizar a definição que Bakunin faz sobre a liberdade. Bakunin diz que há três momentos essenciais da liberdade do homem.

Esses três momentos são: primeiro, o feito enorme e positivo da criação social; o homem vive em sociedade, o homem adquire humanidade com os outros, sem sua relação com os outros o homem não teria chegado à sua hominização; ou se preferirem, antes que o homem, o australopithecus, o homo habilis, ou o homo erectus, não tivesse chegado a construir um útil, um instrumento, a utilizar a palavra, a criar um código ou instruções, não estivesse fazendo algo com o outro, não estivesse em relação com o outro; esse aspecto sociológico da interação, a sociedade como tal, é um elemento central e positivo da liberdade humana. É um absurdo, diz Bakunin, crer que o homem é livre antes de entrar na sociedade, como mantém o credo liberal, segundo o qual cada indivíduo renuncia a uma parte de sua liberdade para pactuar com os outros um Contrato Social, posição que vai necessariamente à dominação política. O homem não é livre antes de entrar na sociedade, é a sociedade que o faz livre, o elo em relação com os outros, a autonomia do indivíduo na sociedade que permite a aparição da liberdade. Por outro lado, é a sociedade que permite também a aparição do Poder. Antes da vida em sociedade não havia nem bem nem mal, não há nem Poder nem Liberdade, são as construções do homem na sociedade que fazem que a liberdade tenha um valor positivo.

Mas esse momento não basta, diz Bakunin. Para que a sociedade evolua, para que a sociedade se transforme, para que esse feito fundamental do homem que é sua humanização em sociedade não se estanque, não fique ali amarrado ao seu primeiro momento, necessita-se da rebelião, a rebelião do indivíduo, que é o segundo e fundamental momento da liberdade. Mas a rebelião é ao mesmo tempo o momento mais difícil do ponto de vista pessoal, e também o mais fácil de conceber, porque todos sentimos a opressão e tendemos espontaneamente a nos rebelarmos contra tudo que nos oprime. O desejo é uma força inerente ao homem que vai encontrar um limite, não no outro, mas na dominação do outro, no Poder Político que o outro pode se atribuir para impedi-lo de construir seu desejo com os demais, com os outros. O segundo momento da liberdade é essencialmente a rebelião, a negação do que existe, para alcançar algo que não existe, mas que pode vir a ser.

E o terceiro momento, o mais difícil, é o de rebelar-se não contra a sociedade que está fora, não contra a instituição que temos diante de nós e que nos oprime, mas de nos rebelarmos contra a instituição que temos internalizada, que temos dentro de nós. Essa necessidade que temos contra a sociedade que levamos dentro é, ao mesmo tempo a confirmação de que o indivíduo é o que é em relação com os outros e também o fator que o impede de pensar, ou dar-se conta, ou compreender até que ponto está alienado, até que ponto está dominado, até que ponto responde a uma sociedade que se lhe apresenta como externa, como se fosse o natural, o dado; enquanto a sociedade não é o natural, nem é nada senão uma construção humana. A autonomia do homem, como a liberdade do homem, nasce nesse processo de autoconstrução.

Vou extrair somente duas consequências do que acabo de dizer, a primeira: é um absurdo pensar que a liberdade, qualquer tipo de liberdade, a liberdade filosófica como a liberdade política, pode ser concebida como um desejo ilimitado; a liberdade sem limites, sem obrigações, sem a relação com os outros, é a liberdade do tirano: o único que pode fazer o que quer e quando lhe convém é o tirano. Os homens respeitam ao outros porque vivem com os outros, porque necessitam dos outros para serem, eles mesmos, livres; a liberdade de cada um se estende ao infinito com a liberdade dos outros. Mas exige obrigações sociais. A obrigação social é o elemento que está na própria base da norma social; não há sociedade sem instituição, não existe uma sociedade sem norma, não existe uma sociedade sem linguagem. Uma criança que aprende a falar o aprende em uma instituição funcionante da sociedade.

Essa condição de obrigação social está totalmente difundida ou distorcida nas sociedades hierárquicas, com o Estado, ou seja, em sociedades que todos conhecemos (até o momento não existiram praticamente outras), que são as sociedades de dominação política ou construídas sobre a dominação política. O que ocorre em todas essas sociedades é que, como a norma ou a lei está ditada por uma minoria que expropriou a capacidade simbólica da totalidade do social, a obrigação social deixa de ser tal para se transformar no dever de obediência.

Nós sentimos as normas ou as regras sociais em que vivemos não como formas das relações entre os homens, que podemos modificar na inter-relação com os outros e aprofundar no sentido da liberdade humana, mas as sentimos como algo que nos é imposto. Na sociedade civil, as normas são vividas como a obrigatoriedade da obediência. O Poder Político, seja totalitário ou representativo, impõe a todos nós uma norma, uma série de normas, de leis, de regras, sobre as quais não temos decidido nada e sabemos profundamente que nunca participamos em seu estabelecimento. É a existência do poder político ou dominação que transforma a obrigação social em dever de obediência, transformação que constitui a própria essência das sociedades hierárquicas.

Se pensamos em criar uma utopia para o futuro, para o próximo século, e pensamos em construir o projeto de uma sociedade livre, temos que entender que a anarquia não é falta de normas – a falta de normas é a anomia ou o caos. A anarquia é uma institucionalização anárquica da sociedade, ou seja, o estabelecimento de instituições anarquistas em que os homens possam viver e criar a igualdade, a justiça e sua própria liberdade.