Título: As bases psicológicas da sociologia
Subtítulo: Princípio do fenômeno social
Data: 1897
Notas: Titulo Original: Les Bases psychologiques de la sociologie; V. Giard et E. Brière, 1897 (p. 1–54).
Tradução e Revisão por André Tunes @Consciência Subversiva
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I

Ao abordar a definição do fenômeno social, o que, acima de tudo, atinge os olhos do observador é a faculdade geral de tal fenômeno de se prestar a um método duplo: científico e criativo. A vida social apresenta a matéria por excelência, que se submete tanto à observação científica quanto à ação teleológica, e constitui objeto de estudos, assim como de política. Na aparência, essa bifacialidade pode parecer contraditória e suas duas faces exclusivas uma da outra. Pois a ciência deve ter a ver com um assunto acessível à nossa experiência, com os fenômenos da vida, com fatos, que universalmente e sem exceção estão sujeitos à inflexível lei da causalidade e, portanto, todo fato vital, individual e social, o nascimento de uma nova corrente histórica, assim como a liberação do calor, deve ser considerado como um resultado necessário e inevitável de certos fatos preexistentes, de certas condições dadas, um resultado para o qual todo esforço “indispensável” e consciente da vontade humana é tão supérfluo e desprovido de qualquer significado, como é para qualquer processo natural.

Pois, se encaramos a vida como objeto de um estudo científico, é impossível para nós perceber algo diferente de uma série contínua de fenômenos, desenvolvendo-se nas relações de tempo e espaço, que, unidos por laços inabaláveis de causalidade, são mutuamente determinados em sua qualidade, em sua sucessão e coexistência. Consequentemente, todo fenômeno dado, considerado como o termo desta série, mesmo que ainda pertença inteiramente ao domínio do futuro, e só exista como possibilidade de um fato distante, tem, no entanto, a marca indelével de um condicionado, e é nesse caráter apenas que pode ser pensado. Mas condicionamento significa que sua existência não começa de maneira espontânea e independente, no próprio momento do aparecimento do fenômeno em sua forma individual e explícita, mas isso já está implícito na potencialidade (in potentia) de certos fatos que precederam esse momento de aparição manifesta, que é inteiramente determinado pela totalidade de suas condições, determinado também em sua qualidade como no tempo e, consequentemente, necessário. – Os fatos futuros esperados quando são considerados cientificamente, isto é, como os efeitos de certas condições dadas, diferem da realidade apenas porque sua individualidade ainda não se manifestou em uma existência distinta, mas que está latente em suas condições, identificando-se com elas; no entanto, possui uma realidade tão determinada e natural, como indiferente a todos os impulsos da vontade humana, como as próprias condições. – Portanto, onde quer que o condicionado (e tudo é do ponto de vista da ciência) apareça, não há mais espaço para o incondicional moral (ética), para a contingência descobrindo o campo antes do fim criativo dos esforços voluntários; só pode ser sobre o que é, era ou será, mas não o que deveria ser, sem que o significado adequado dessa categoria fosse aniquilado. A certeza de um certo fato previsto, a maior ou menor possibilidade de seu surgimento, depende apenas do grau de conhecimento que temos das condições desse fato, crescendo à medida que esse conhecimento se aproxima de todas essas condições; mas nada tem em comum com a própria essência da coisa, a possibilidade objetiva, independente de nosso conhecimento, do fato; pois, objetivamente, todo fato é necessário, ou quase impossível.

E assim como o método científico, tomado no âmbito da causalidade, exclui todo elemento criativo, no sentido estrito da palavra, elemento de criação arbitrária de algo que poderia ser, mas também não poderia ser, da mesma forma, a criação, tanto na moral e nas belas artes, como na política, contradiz o método científico, surge acima da experiência e, buscando seu objeto fora da experiência, age como se não houvesse causalidade. – Minha ação, determinada por certas condições, não é mais uma criação, mas apenas um fenômeno de caráter especial, atraído por uma série de causas, e então perde seu significado moral, sua dignidade de dever; e seu objeto, das alturas do ideal, estranho a toda experiência, desce ao grau do efeito comum, resultado de uma necessidade espontânea, independente de nós mesmos. – Mas o conceito “criação” implica o da contingência. Minha ação, em vez de ser um termo definido na grande série de fenômenos, aqui se manifesta com o caráter de uma causa final, espontânea e decisiva, como um “decreto” definitivo absolutamente incondicionado, e necessário para que o ideal planejado seja realizado. Sem meu esforço criativo, o que poderia acontecer não acontecerá; mas o esforço criativo da minha vontade é condicionado por si mesmo, pode ou não ser. Este é o princípio da contingência. – De acordo com este princípio, o objeto do meu esforço criativo, o fim, tendo sua fonte na árvore incondicionada da vontade, e consequentemente, libertado da causalidade natural, já que não é necessariamente determinado por nenhuma das condições existentes e, portanto, não pode resultar de uma série antecedente de fenômenos – este objeto não pode ser ele mesmo um fenômeno (uma vez que cada fenômeno está sujeito à causalidade); não faz parte do mundo abrangido pela nossa experiência, mas constitui um ideal, isto é, uma possibilidade fenomenal de tal modo que só pode entrar em relação causal com um ato livre da vontade consciente; que quando é realizado e entra no mundo dos fenômenos, é apenas como um efeito de uma causa final, como um objetivo livremente alcançado, mas nunca é determinado como uma necessidade em uma série de fenômenos que se desenvolvem naturalmente.

Esse princípio de contingência e essa supra-fenomenalidade do objeto manifestam-se da maneira mais expressiva e clara na criação artística, portanto, onde o método científico, baseado na causalidade, não encontra lugar. No entanto, também o encontramos ao lado do método científico, na política e na moralidade. A ética, apesar de ter a ver com o objeto de uma ciência estrita – a vida psíquica do homem – é, não obstante, uma criação, uma adaptação de nossa vida interior a um critério, um ideal obrigatório. Na ética, embora afirmemos que não há ações sem motivos e motivos sem processos psíquicos que os condicionam, embora estivéssemos claramente conscientes de que na vida mental do homem, assim como na vida física, tudo o que é preciso ser, tudo é justificado por suas causas, como uma necessidade, os fenômenos psíquicos e físicos, elementos únicos de toda a vida, que só podem se desenvolver na categoria de causalidade, no entanto, falamos do bem e do mal, do que deve ser e de quem não deve ser em vista de um ideal obrigatório. E apesar de todo o determinismo psíquico, apesar da inflexibilidade das leis em que aparece a causalidade da vida interior, acreditamos que temos o pleno direito de propor um critério moral para esta vida, um certo ideal, seja virtude por si mesma, perfeição – como na ética intuitiva, ou felicidade pessoal ou universal – como na ética hedonista ou utilitarista. Ora, o caráter essencial do ideal, qualquer que seja o conteúdo da noção que se forma, permanece sempre o mesmo, consiste em ele estar completamente livre de toda causalidade fenomenal.

Se, considerando minha conduta, vejo que tento ser bom para meu amigo, porque o amo, será apenas o lado psicológico da minha conduta. Minha bondade resulta necessariamente do sentimento dado, e é tão justificado em sua existência quanto as más ações, dado o sentimento de ódio. Ele existe ou não, de acordo com os fenômenos que a determinam e que, por sua vez, devem ser determinados. Não há lugar aqui para qualquer critério moral; a causalidade inflexível e constante também sanciona tudo o que se tornou um fato real; e tudo o que se torna real deveria ser realizado, sendo unicamente possível. – Se, pelo contrário, faço uma diretriz para minha conduta, isto é, se eu olhar para ela dê um ponto de vista ético, então, em vez de ver meus estados físicos existentes e prever os resultados, considero o que deve estar de acordo com o critério moral que os resultados deduzidos das qualidades particulares de meu personagem concordam ou discordam das exigências deste critério. – Portanto, o critério moral só pode manter seu valor normativo para nossa vida, desde que não seja ele próprio determinado como um fenômeno. Pois, entrando em qualquer série de causas, ela se democratiza, instantaneamente perde todos os seus atributos específicos, e torna-se tão necessário para toda esta série como todos os seus outros termos.

Na política, o elemento criativo retém todos os mesmos caracteres que são contraditórios às leis da fenomenalidade. Um certo ideal político, se considerarmos isso do ponto de vista do método científico, ele nos será apresentado como um resultado planejado de toda uma evolução social que já passou. Este resultado, assim como cada fato encadeado na causalidade dos fenômenos, só pode ser necessário, ou completamente impossível. Se, então, a presente época da evolução histórica determina o futuro, determina-o totalmente. O lado moral da vida social, assim como seu lado econômico, aparece como uma consequência de certas causas históricas, e se prolonga na série interminável de fenômenos antecedentes que tornam absolutamente necessária a aparência dos fatos dados. – No entanto, este mesmo sujeito é imposto de maneira intuitiva sobre a prática humana, é o objeto inteiramente legítimo da política, o objetivo das tendências conscientes, que, sob diferentes pontos de vista, apresentam o problema de criar e melhorar a história. – O exemplo clássico desse elemento criativo, que está perfeitamente de acordo com o determinismo científico, encontramos no socialismo moderno. Do ponto de vista científico, o capitalismo carrega dentro de si não apenas a semente dos elementos econômicos da futura organização social (como o enorme poder das forças produtivas, o trabalho socializado, as grandes organizações industriais, o plano consciente de produção que está começando a ser a forma dos cartéis, a propriedade impessoal dos sindicatos e das sociedades por ações), mas também prepara esta força de incubação da consciência humana, que deve trazer à luz as formas de uma nova vida que estão dormentes lá. Destruindo a pequena indústria e os pequenos proprietários, ao mesmo tempo, organiza o grande exército do proletariado; trazendo o homem sob o jugo da exploração, destruindo o lar de sua família, ao mesmo tempo em que desperta novas tendências e novos desejos nele, o direciona para ideias até então desconhecidas; desta forma, o capitalismo prepara não apenas o material de construção, mas também o próprio construtor, isto é, tudo o que é necessário para o nascimento do futuro. Este é o princípio do socialismo científico: determinismo evolutivo. O ideal do futuro social, aqui considerado do ponto de vista da causalidade fenomenal, deixa de ser ideal, no sentido estrito da palavra, e torna-se o resultado necessário do desenvolvimento histórico. – Apesar disso, o socialismo moderno não está satisfeito com a necessidade desse resultado, mas contemplar seu próprio ideal, independente de toda causalidade, realiza seu papel criativo como partido político. Os filósofos, diz Marx, apenas explicaram o mundo de uma forma ou de outra, mas a tarefa real é transformá-lo. – Este elemento criativo constitui o traço característico do socialismo, distintas das teorias sociais do “liberalismo”. Estes traçam um pequeno círculo para a atividade humana, consideram as relações sociais como leis da natureza, diante das quais o homem só pode tomar a atitude de “laissez-faire”, confessar sua completa impotência, submeter-se com resignação e ficar em silêncio. Assim, nenhum outro partido postula o objetivo de criar uma nova sociedade e, no máximo, sob a pressão do socialismo, se formula alguns planos para o futuro, aos quais, além disso, não acredita em si mesmo. O naturalismo comprime neles sua própria ação política, reduzindo esta ação à reação contra as ideias revolucionárias que estão se espalhando entre as massas. O socialismo, ao contrário, se vê como uma força que, embora emanando da história, deve, no entanto, governar a história, e à qual, apesar de todo determinismo evolucionista, pertence a última palavra que decidirá o desenvolvimento futuro da humanidade. – A contradição é revelada de maneira muito expressiva. A história, o desenvolvimento natural das relações sociais, determina todo o futuro; a consciência do proletariado, a luta de classes, as correntes ideais e as reivindicações revolucionárias, em suma, todo o lado moral da vida social, bem como o capital e a grande indústria, que as leis e instituições políticas aparecem em virtude de certas causas históricas, estão ligadas a toda a série de fenômenos, que tornam necessário cumpri-lo. No entanto, o socialismo, como partido político, considera indispensável a conquista das novas formas de vida, embora essas formas sejam determinadas espontaneamente; considera necessário, a fim de alcançar o ideal, realizar uma ação final, propagar ideias, organizar, lutar, em suma, impulsionar todo o desenvolvimento histórico, e fá-lo com esta forte convicção de que sem este trabalho criativo e final, o ideal não será adquirido, embora cientificamente seja determinado como o resultado de toda a evolução passada, e como tal, em qualquer caso, deve vir necessariamente. – O ideal permanece, portanto, também neste caso, livre da causalidade fenomenal, preserva a pureza de sua natureza, e é apenas um ato da vontade consciente, o ato da revolução, que pode realizá-lo.

A contradição destes dois métodos, científicos e criativos, manifesta-se de maneira muito expressiva. Baseia-se na causalidade, determinismo evolutivo, e considera cada fato histórico, tanto econômico como moral, consciente ou inconsciente, como necessário, condicionado por toda uma série de fenômenos antecedentes; o outro admite a contingência como base, considera fatos históricos como podendo ou não acontecer, seguindo a ação de uma vontade consciente, que condiciona a si mesma. Um vê o futuro social como o resultado indispensável de toda a evolução passada, um resultado determinado em fenômenos e surgindo espontaneamente do presente; o outro o considera como um ideal liberado de toda causalidade, não condicionado por nenhum fenômeno e que só pode ser determinado pelo ato da vontade consciente, por uma causa final. Um não conhece categorias éticas, fala apenas do que é ou deve acontecer, absolutamente estrangeiro e inacessível a qualquer moralidade ou ação política; o outro, ao contrário, postula normas obrigatórias, fala do que deveria ser, tanto no campo da moralidade individual quanto na política.

A solução desta antinomia metódica tem sido geralmente procurada na violação da pureza do método evolutivo. Para justificar a necessidade da existência de uma política criativa da história, confrontada com a espontaneidade do desenvolvimento social, por exemplo, uma estranha divisão de fenômenos em duas categorias: aquelas sujeitas ao determinismo evolutivo, e aquelas que não são: as relações das “coisas” econômicas pertencem exclusivamente ao desenvolvimento espontâneo, à evolução histórica; enquanto todo o domínio da consciência humana, e especialmente o domínio das ideias sociais, a ideologia, constituiria a base da autocriação, e como se fosse libertada do determinismo histórico, justificaria a existência do partido e da ação política. É, no entanto, fácil ver tudo o que é arbitrário e superficial em tal divisão, já que todo fenômeno, tanto econômico como moral, tanto físico quanto psíquico, pode ser tomado como o objeto da ciência, e então sua classificação na categoria de causalidade, a busca pelas causas que condicionam sua existência, a observação dos fenômenos pelo prisma da continuidade dos fatos impõe-se necessariamente ao pensamento humano, por causa desse axioma, envolvido a priori em nossa consciência e não sabendo nenhuma exceção no mundo dos fenômenos, que tudo o que se torna, torna-se por algo, é o efeito dos outros fenômenos que o determinam. A ideologia pode, portanto, ser considerada como um produto histórico, tanto quanto as relações econômicas, especialmente desde que a pesquisa das ciências sociais demonstra a sua estreita dependência de processos econômicos, sua íntima e profunda união com o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, suas influências e suas ações mútuas com todo o lado material da vida social, tão interligados entre si, que é impossível perceber a continuidade de uma evolução puramente econômica, livre desses termos ideológicos que se interpõem na série de fenômenos econômicos, como suas causas ou efeitos. – Não há, portanto, nenhum princípio que possa entregar a ideologia, os fenômenos da consciência social, artificialmente eliminados, do jugo do determinismo histórico, e torná-lo o campo exclusivo e livre da criação política.

Seria uma fuga não menos desajeitada do pensamento, que gostaria de se livrar dessa antinomia metódica, do que afirmar – como é frequentemente feito, no entanto – que a ação final da política, embora não possa de modo algum alterar a própria evolução social, acelera-a: o futuro viria do seio do presente com a nossa ação final sem ele; emergiria como determinado pelo desenvolvimento histórico, do qual nós, com nosso ideal e nosso trabalho criativo, somos apenas um termo específico; Só se poderia dizer que a ação política aceleraria esse nascimento do futuro, mas nada acrescentaria de novo à qualidade de seu conteúdo. A realização de um certo problema histórico, se é para acontecer, necessariamente chegaria, como sendo determinado pela causalidade histórica, cego, implacável e sem hesitação; nós mesmos poderíamos apenas encurtar sua evolução espontânea, por meio dos esforços conscientes de nossa vontade, por meio de uma ação política, a propaganda de ideias. Deste modo, a contradição seria resolvida pela divisão do campo da evolução e da criação – entre o lado qualitativo e o lado quantitativo da vida. No lado qualitativo, há exclusivamente a evolução: os tipos de organizações sociais, o conteúdo da história é determinado por processos espontâneos; no lado quantitativo, entendido como o período de tempo necessário para um dado desenvolvimento histórico, reina a criação, e é somente aqui que ele encontra o solo livre. O tempo é aqui considerado como uma certa abstração real, existente independentemente dos fenômenos, e com o qual se pode operar sem tocar seu conteúdo, como algo muito vazio, desprovido de qualquer conteúdo fenomenal, pairando sobre a vida e, ainda assim, real. – O absurdo filosófico de tal concepção é óbvio. O tempo, que é apenas a forma de nossa compreensão dos fenômenos, não pode existir como uma determinada realidade independente dos fenômenos e destituída de seu conteúdo qualitativo; a noção abstrata de “tempo” corresponde objetivamente a nada, a não ser uma certa série de fenômenos, de sucessivas mudanças. Acelerar o advento de um determinado fato, portanto, significa – eliminar uma certa série de fenômenos, que separa uma causa presente de seu efeito esperado, quebrando consequentemente a cadeia de causalidade, aniquilando certos elos. A criação, agindo sobre o tempo de um devir, portanto, necessariamente agiria sobre o conteúdo muito fenomenal da vida, que é determinado pela evolução. – Portanto, a contradição não pode ser resolvida, e permanece impossível de ser resolvida, desde que nos limitemos ao domínio dos fenômenos.

A solução da contradição deve ser procurada em outro lugar. Como é a contradição dos dois métodos mutuamente exclusivos, e cada um dos quais não pode reinar no campo de seu objeto, a não ser exclusivamente, consequentemente, a solução deve ser buscada em um terreno absolutamente neutro para ambos, onde nenhum deles ainda exerce seu poder; pois, assim que entramos no reino da causalidade ou criação, devemos nos submeter incondicionalmente ao reinado absoluto de um método ou de outro, e um ou outro deve ser excluído; o ideal não admitirá o evolucionismo, a evolução do ideal. A solução só pode ser encontrada neste único ponto, que, inacessível a ambas, as condiciona e torna possível uma e outra.

Mas neste ponto em que a contradição imaginada desaparece, onde a bifacealidade metódica se funde em sua fonte única e comum, esse ponto deve ser o que, enquanto condiciona o fenômeno, não é o fenômeno em si, que contém, implicitamente, os dois princípios: evolucionista e criativo. – O que é, nos é indicado pela própria natureza dos objetos, em que aparece a coexistência dos dois métodos. Essa coexistência só é possível aqui, onde não se tem que lidar apenas com os fenômenos, mas também com o sujeito pensante. – O método criativo, caracterizado pela contingência e pela categoria ética, expresso na fórmula “deve ser”, não encontra, por exemplo, lugar nas ciências naturais, é completamente estranho a seu espírito. As proposições de que “o oxigênio deve se unir ao hidrogênio”, ou “esse calor deve ser transformado em trabalho mecânico”, não têm sentido. Só a observação do fato de que o oxigênio combina, ou que o calor é transformado, exaure todo o conteúdo do assunto dado. Não há espaço aqui para a ética, mais do que para a contingência, totalmente banida pelo determinismo da causalidade, manifestada em leis constantes e invariáveis. – Encontramos a mesma coisa nos fenômenos psíquicos, quando os consideramos em seus processos inconscientes, que acontecem sem a intervenção de nossa apercepção, o esforço consciente da vontade: as representações associadas por contiguidade no espaço são evocadas naturalmente; a noção geral de “cão” contém em si as noções de todos os cães de concreto; mas não: deve evocar ou deve conter; uma moral de impressões, que exigiria tal excitação para responder a essa impressão, seria tão cômica e sem qualquer fundamento, como uma moralidade de combinações químicas. – Portanto, todos os fenômenos, físicos e psíquicos, parecem completamente refratários ao método criativo, incapazes de se adaptar à forma de contingência ética, quando os consideramos em suas relações consigo mesmas, em suas ações naturais e espontâneas; o domínio do fenômeno puro permanece sob o reinado exclusivo de causalidade. – Pelo contrário, os fenômenos físicos e psíquicos podem perfeitamente encaixar-se na forma de contingência ética, quando considerado em sua relação com o sujeito, com o ser pensante: o calor deve ser transformado em trabalho mecânico para os fins produtivos do homem; bens, produtos do trabalho, devem corresponder às necessidades humanas; o pensamento deve ser lógico; bons sentimentos devem governar nossa conduta. Aqui, então, o método criativo tem sua aplicação bastante legítima, é até mesmo exigido por nossa intuição, embora, no trabalho produtivo, nas ações de nossa vontade, assim como no curso de nossos pensamentos, encontramos apenas fenômenos, físicos ou psíquicos, formando todo o conteúdo dos fatos dados; mas a sucessão destes fenômenos, suas relações mútuas, são aqui considerados em relação à nossa vontade consciente, em relação ao homem como um ser pensante, e é por isso que seu conteúdo, embora seja puramente fenomenal, é, no entanto, bastante acessível ao método criativo, às categorias de finalidade e de dever, embora permaneçam – ser fenomenal – sujeito ao princípio da causalidade, ao método científico. Assim, a coexistência dos dois métodos só é possível aqui, onde o homem intervém como um ser pensante, onde as séries de fenômenos são consideradas em relação ao sujeito. Como isso é justificado? Qual é o misterioso ponto que existe no homem, e que não apenas permite a coexistência dos dois métodos mutuamente exclusivos, mas também requer essa coexistência; que, de modo algum enfraquecendo o determinismo fenomenal, impõe-lhe, no entanto, normas obrigatórias e permite vislumbrar as sublimes alturas do ideal?

II

Para compreendê-lo, somos obrigados a abordar a pura teoria do conhecimento e a buscar a solução do mistério no próprio princípio do fenômeno. – O fenômeno é tudo com o qual podemos entrar em qualquer relação, tudo o que é ou pode ser acessível à nossa experiência externa ou interna, que está diante de nós como algo dado. Uma vez que só isso existe para nós positivamente, que entra de qualquer maneira no reino da nossa experiência, em nossa vida, como coisas reais ou possíveis, físicas ou mentais – portanto, toda existência com um valor positivo – a única coisa que podemos conhecer – é um fenômeno. Os objetos do mundo externo, os fatos da vida, assim como todos os estados psíquicos, a realidade real, bem como a possibilidade, em uma palavra, todo o conteúdo da alma e do espaço, constituem a fenomenalidade. – Mas se, independentemente de qualquer escola metafísica, independentemente de como vemos o conteúdo de nossa experiência – que é como tendo o valor de uma realidade aparente apenas, ou de uma coisa-em-si, – se quisermos reduzir a uma abstração única toda essa heterogeneidade do conteúdo de nossa experiência, todo o conteúdo da vida em geral, se quisermos abraçar todas as existências acessíveis à nossa experiência em uma única propriedade comum a todas elas sem exceção, – então veremos que essa propriedade única que abrange tudo, essa última e mais alta abstração, que não pode mais ser elevada a uma maior grau de generalização, consiste apenas no fato de que existências de todos os tipos são o objeto de nosso pensamento. – Tudo o que é, não no sentido metafísico, mas positivo, quer dizer, aquilo que é como uma coisa que pode entrar no domínio de nossa experiência, externa ou interna, é somente por causa disso, que essa coisa constitui o objeto de nosso pensamento, ou pode tornar-se assim. Uma coisa que não poderia ser percebida por nós em qualquer condição, nem em sua realidade viva nem em seus resultados, mais como um objeto externo, que, como representação, conceito ou sensação – coisa que, em uma palavra, sob nenhuma forma, poderia constituir o objeto de nosso pensamento, mesmo que essa coisa existisse em si mesma, no domínio inacessível dos mistérios – no entanto para nós não existiria de todo, não possuiria nenhum valor positivo da existência, seria um nada (rien) absoluto em todo o campo da nossa vida. – Quando qualquer fato é realizado, e nos traz uma ação recíproca com ele, ela é realizada por causa do que percebemos como uma realidade presente, ou se a percebemos em seus resultados, ou como uma possibilidade prevista. Quando, por exemplo, a chuva cai, é um fato da realidade, se percebemos durante a sua duração; não é, no entanto, menor que um fato quando ninguém o percebe, porque se manifesta então em suas consequências, como fato que foi; mas, mesmo assim, nem durante sua duração nem em seus resultados não é percebido por nós, pode, no entanto, ter a existência de um fato, como uma possibilidade pura que seria apresentada ao nosso pensamento por qualquer razão, como um fato em geral, isso poderia ser ou não estar em um determinado momento. Então, apenas a nossa forma, a nossa maneira de perceber muda aqui; mas a percepção em si, o nascimento do pensamento, permanece sempre um critério inseparável para a existência do fato. – Podemos bem assumir a existência de muitas coisas despercebidas, velada hoje diante de nós, ou mesmo velado para sempre, um mundo infinito de possibilidades, mundo de relações de ação desconhecidas, formas nunca observadas, estados de sentimento nunca experimentados; mas a mera suposição dessas coisas possíveis lhes dá um certo valor positivo da existência, como de uma coisa representada, prevista e, consequentemente, o objeto de nosso pensamento; apenas, esse objeto é aqui de natureza puramente psíquica. – Da mesma forma, os fatos mais reais, os menos sujeitos a críticas e suposições, como a dor, por exemplo, extrai todo seu poder de existência de sua propriedade de ser um objeto de nosso pensamento; uma dor que não seria percebida, que não poderíamos localizar em parte alguma, nem mesmo pensar nisso de um modo geral que é, não existiria como um fenômeno psíquico, como nossa sensação; a luz do sol seria totalmente destruída, desaparecendo na região negativa do incognoscível, se não pudesse ser percebido como uma impressão real, nem representado como um fenômeno que foi ou pode ocorrer, ou concluído como uma causa ou efeito, necessário ou possível, dos fatos observados, isto é, se em algum aspecto não se tornou o gerador de nosso pensamento.

O atributo da “existência” é, portanto, equivalente à possibilidade de se tornar o objeto do pensamento. Algo é positivamente – como um fato da vida em geral – isto é, é uma possibilidade de pensamento. Estas são duas noções bastante adequadas, substituindo completamente uma à outra, cujo conteúdo é idêntico. Se admitirmos as existências metafísicas, as coisas em si mesmas, existindo independentemente do nosso pensamento (como matéria, ou mundo das ideias de Platão), então podemos dizer, que entre nós e todo ser existente fora de nós é sempre o pensamento interposto, a única ponte que nos une à coisa em si, e que, consequentemente, todo ser só pode se manifestar a nós como quando se torna o objeto de pensamento, isto é, que em a possibilidade do pensamento está implícita em seu valor positivo, o valor do fato que pode entrar em nossa experiência, tornar-se um momento da vida, uma partícula do nosso mundo. A possibilidade de pensar é, portanto, o princípio do fenômeno. – Este princípio não prejulga nenhuma teoria metafísica e retém seu valor universal tanto para o materialismo como para o idealismo; pois é somente a experiência expressa em abstracto, a propriedade inseparável de todos os fatos concretos sem exceção. Se até supomos que os átomos químicos são o substrato de todas as coisas, o atributo da possibilidade do pensamento permanece sempre a condição indispensável, de modo que o grupo, a combinação, a síntese desses átomos se torna uma existência positiva, uma existência pertencente ao domínio de nossa experiência.

Isso, no entanto, é apenas um lado do princípio – expresso explicitamente, que implica necessariamente o outro lado – não expressa, assim como a direção “certa” só é possível em face de seu oposto: direção à esquerda. – O princípio do fenômeno, enquanto objeto do pensamento, contém implicitamente a noção do sujeito pensante. – O objeto do pensamento é impossível sem o seu oposto – o sujeito pensante, bem como o sujeito pensante sem o objeto do pensamento, desde que permaneçamos no reino das existências positivas, existências que entram na nossa experiência, na vida em geral, sem nos aventurarmos na misteriosa região do “pensamento em si”, ideias existentes fora da nossa consciência, isto é, noções que não podem ser pensamentos, desprovidos de qualquer conteúdo intuitivo.[1] – Portanto, diante do valor positivo do fenômeno, como de uma coisa percebida, deve surgir seu valor negativo – aquele que percebe. Em face de seu caráter objetivo, da coisa que se impõe espontaneamente, seu caráter subjetivo surge – a negação de tudo, necessariamente condicionando a objetividade. Todo fenômeno, portanto, apresenta, metaforicamente, duas faces: objetivas e subjetivas. Somente o primeiro, sendo o objeto do pensamento, é cognoscível; o outro, sendo aquilo que condiciona o objeto do pensamento, não pode ser ele mesmo, é incognoscível. O primeiro é carregado exclusivamente com todo o aparato de pensamento, exige provas, razões; o outro, sendo inacessível ao conhecimento, nega toda a lógica, está livre de qualquer lei obrigatória para objetividade cognoscível; não passa por formas de conhecimento, porque é ela mesma quem sabe; não precisa de razões, porque é a razão em si. É como um olho “que, vendo tudo, não pode se ver”; ou uma, luz que, uma vez que ilumina tudo, não precisa se iluminar. Portanto, todas as leis e formas, nas quais o mundo da vida nos aparece, e suas categorias essenciais, o tempo, o espaço e a causalidade, aos quais todas as coisas estão sujeitas, constituindo um todo compacto e lógico, pertencem exclusivamente ao lado positivo do fenômeno, ao fenômeno como objeto do pensamento e são inteiramente estranhos ao outro lado – o lado negativo. Ele, como condicionador do objeto, deve ser uma completa negação de todos os seus atributos. É essa face negativa dos fenômenos que é o sujeito pensante, que se opõe aos próprios fenômenos, às coisas e aos estados psíquicos, ao objeto em geral; ou, falando de maneira mais simples, constitui o que cada um percebe como seu próprio ‘eu’ (moi), sendo para cada um a realidade mais segura e mais conhecida.[2]

A intuição propriamente dita concorda da maneira mais completa com o caráter negativo do sujeito. – Nosso “eu” é baseado em nada, não tem razão de ser, nenhum critério de certeza constitui para si uma razão suficiente, seu único princípio legítimo. Para todos nós exigimos um certo critério lógico, uma certa regra nos preservando dos erros; tudo pode ser duvidoso e ilusório, por causa das milhares de diferentes falhas e desvios que incessantemente aninham em nosso pensamento e nossos sentidos, distorcendo a precisão do conhecimento; nosso “eu” sozinho é elevado para nós acima de qualquer dúvida, é um axioma que desdenha a evidência, de modo que a questão do critério – “como eu sei que sou eu?” – parece-nos bastante supérfluo e sem sentido. Nosso “eu” é completamente incognoscível, não podemos desenvolvê-lo em nenhuma definição, descobrir nele qualquer atributo, de qualquer forma, exceto que sou eu; e, no entanto, não há nada mais claro para nós do que o nosso “eu”, nada mais imediato e livre de qualquer falha, nada mais real. Ele é inacessível à definição, porque não há nada mais certo do que ele, e nada pode ser usado para defini-lo. – Ele se opõe a todos os fenômenos: Eu não sou nenhum objeto externo que vejo no momento dado, porque o vejo como um objeto; Eu não sou meu organismo, porque percebo e examino este organismo como um objeto; Não sou representação, nem sentimento, nem conceito que preenche minha consciência num dado momento, porque eu os vejo como meus estados psíquicos, embora em minha consciência não exista nada além da série desses estados, desenvolvendo-se em um curso indeterminável; Eu não sou nem dor, nem volúpia, nem desejo; Eu acompanho tudo, mas não sou mais do que esse “eu”, para o qual não preciso de explicação, porque é conhecido por mim e claro acima de qualquer definição. -Opondo-se a todos os fenômenos, é por esse mesmo fato evasivo para o pensamento, fugindo constantemente de todas as suas formas, não se permitindo ser cativado em qualquer noção. Quando penso nisso, não é mais o “eu” que constitui o objeto do meu pensamento, mas apenas um certo conceito filosófico; o “ego”, quando queremos apreendê-lo pelo pensamento, imediatamente se transporta para o polo negativo do fenômeno, ocupa o lado ativo e se percebe seu fantasma conceitual, assim como um olho que só pode ver sua imagem refletida em um espelho, mas nunca ele mesmo. Acompanhando mudanças contínuas, nosso próprio “eu” preserva sua continuidade invariável, pois, sendo a negação de todas as qualidades, ele não pode experimentar a mudança, sendo uma negação de tudo, ele permanece o mesmo, um nada (rien) fenomenal. Do começo ao fim da vida tudo muda: o caráter, as ideias, as impressões, o ambiente, o organismo, as forças, os desejos; da infância à morte, eu passo por toda uma série de personalidades, física e psicologicamente diferentes; no entanto, apesar de tudo isso, sempre permaneço eu mesmo; sob a máscara das maiores mudanças da vida, a continuidade do nosso “eu” permanece inalterada, une todas essas personalidades mais contraditórias, o que torna possível que na criança e no idoso, na saúde e na doença, a rica impressionabilidade da juventude e na subsequente estupefação, sempre me encontro; em meio aos contrastes mais extremos da vida, mental e corporal, sempre sentimos a identidade, o nosso próprio ‘eu’.

Esse lado negativo da consciência, nosso “eu”, o sujeito pensante do homem, é o que necessariamente condiciona todos os fenômenos e não é um fenômeno em si. É nele, portanto, que está a solução dessa contradição metódica, que aparece onde quer que o homem intervenha como um ser pensante. – A causalidade e a liberdade são reconciliadas aqui completamente, eles até comandam um ao outro, como se fossem partes de uma única síntese[3]. – A causalidade, como forma de nosso entendimento, é propriedade exclusiva do fenômeno em si, do fenômeno como objeto de pensamento; não pode, contudo, relacionar-se com seu lado negativo, incognoscível – o sujeito pensante, que, sendo a negação de todos os atributos, de todas as formas de nossa intuição, é também a negação da causalidade, constitui um domínio inacessível a ela. O fenômeno, que em relação aos demais fenômenos que o precede ou segue, deve, portanto, ser sempre o efeito ou a causa e, consequentemente, submetido a um determinismo rigoroso, em relação ao sujeito, que não pode conhecer quaisquer entraves da causalidade, deve assumir o caráter de uma liberdade completa, portanto, não mais aparecer um resultado necessário, mas um objetivo ou um ideal, que pode se tornar ou não. A relação do fenômeno com o sujeito torna-se assim a de uma contingência final, a que chamamos um ato de vontade consciente. Não pode ser eliminado da causalidade porque é impossível conceber um sujeito pensante sem o objeto do pensamento.

Consequentemente, o princípio do fenômeno, sendo ao mesmo tempo o do ser pensante, exige também determinismo e contingência. – Em torno do polo positivo do fenômeno, onde impera o mundo inteiro, físico e mental, há o determinismo, a causalidade natural, uma atmosfera absolutamente inacessível a qualquer norma ética, em que as palavras “bom” e “mau” se tornam sons vazios, e tudo é igualmente justificado, como necessário, implacável, cego. – Por outro lado, em torno do polo negativo do fenômeno, onde apenas o “eu” humano está sentado, incognoscível, porque todo o conhecimento, negação do mundo, reinam a contingência, as causas finais, o ideal; Os elos simples da série de causas, os fatos, adquirem aqui um caráter ético, estão sujeitos às normas obrigatórias. – E mesmo que essas duas regiões sejam essencialmente contraditórias, elas se condicionam mutuamente, formando um todo único e indivisível. O polo positivo é impossível de conceber sem o polo negativo e vice-versa; pois ambos constituem apenas o único princípio do fenômeno, sendo ao mesmo tempo o princípio do sujeito pensante. Consequentemente, a contradição metódica resolve-se inteiramente. Agora, ao admitir este princípio, colocamo-nos num terreno puramente humano, tomando como ponto de partida o dado primário mais imediato – o homem como ser pensante. Pois, considerando os fenômenos como objetos de nosso pensamento, necessariamente condicionados por sua negação – o sujeito pensante, o “eu” humano – ao mesmo tempo, afirmamos tacitamente que, que fora de nós, na hipotética região dos seres sobre-humanos, existe apenas o grande vazio filosófico, com o qual nem nossa ciência nem nossa atividade podem ter algo em comum.

III

Vamos agora nos voltar para a natureza do próprio objeto da sociologia, que parece unir tão perfeitamente em sua profundidade a contradição essencial do determinismo e da contingência. Acima de tudo, surge esta questão, se este mesmo princípio, que nos parece indispensável para resolver a contradição metódica, preserva seu valor para o objeto da sociologia, isto é, para o fenômeno social, de acordo com esta regra universalmente exigida, que “o método e a doutrina devem ser apresentados juntos, inseparavelmente unidos como matéria e forma” (Schopenhauer). Pois pode-se supor que essa duplicidade do método é aqui artificialmente imposta, que consiste em uma ilusão universal de mentes, da qual uma crítica mais precisa da natureza dos fenômenos sociais pode nos libertar. – A existência de uma política criativa de história apareceria então como um grande prejulgamento do tempo, resultante de uma falsa concepção de vida social, semelhante à da Idade Média, que com a ajuda de orações e magia queria transformar os processos físicos da natureza. Pois na região dos fenômenos sociais, que seriam estranhos por sua própria natureza ao nosso ser pensante, e não poderia ser considerado em uma relação causal com ele, apesar de toda a sua variabilidade evolutiva, não haveria mais espaço para uma ação política final, do que pode haver qualquer partido lutando contra os astrônomos prevendo uma certa revolução planetária e, no entanto, obrigados a exercer sua ação nesse sentido. Onde não há homem, estende-se em todas as suas forças o lema do naturalismo burguês: “submeta-se, fique em silêncio e observe”, porque tudo o que não é nós, é, na sua própria essência, incognoscível para nós e inacessível à ação da nossa vontade. Segue-se que qualquer concepção metafísica da vida social, quer busque a fonte dessa vida na Providência, no meio geográfico, nas relações das coisas, ou no sangue místico da raça, sempre designa para o homem o mesmo papel de resignação passiva diante das leis fatais daquele poder misterioso e inacessível para nós que governam à humanidade; Assim como encontramos diante da natureza dos fenômenos físicos completamente estranhos a nós, diante do mistério das forças moleculares e dos elementos químicos, impulsionados pela pura intuição, sem sequer tentar qualquer tentativa, renunciamos antecipadamente a todo “deve ser”, para qualquer parte criativa nesta região misteriosa, confinando-nos ao simples papel de observadores.

Qualquer que seja a origem metafísica que admitimos para os fenômenos sociais, qualquer que seja a abstração, espiritual ou material, da qual imprimimos o selo em sua essência, devemos, acima de tudo e sem qualquer restrição, atribuir a eles essa propriedade, que eles existem para nossa experiência, que eles entram no reino da nossa observação, como certos valores positivos, como fatos, com os quais o nosso pensamento pode operar. É sua propriedade imediata e, ao mesmo tempo, a mais universal e geral, a propriedade de se manifestar em pensamento, comum a todos os fenômenos, equivalente a toda existência. O fenômeno social, antes de podermos dizer qualquer coisa sobre os seus personagens e o seu conteúdo, é acima de tudo um fenômeno, isto é, o objeto de nosso pensamento, algo que se impõe à nossa percepção, que se coloca diante de nós como um dado certo, gerador de nosso pensamento, sob o aspecto dos diferentes fatos, e introduzido no reino da nossa vida. É a primeira definição do fenômeno social, uma definição da qual nem ele nem qualquer coisa no mundo pode ser entregue a não ser perdendo ao mesmo tempo todo o valor positivo, para passar totalmente para o domínio irreconhecível supra-vital da negação. Sob o objeto de nosso pensamento, no entanto, apenas esconde coisas físicas, ou estados psíquicos. Vamos percorrer todo o reino de nossa experiência, tudo o que é real ou possível, e não encontraremos nada que não seja gravável em nenhuma dessas categorias. Entre essas duas regiões, uma das quais, sob a dominação exclusiva do tempo, transforma tudo no estado interior de nossa consciência, e a outra, sujeita também ao tempo e ao espaço, traz tudo de volta ao movimento e à matéria, divide e exaure totalmente toda a nossa intuição, todo o conteúdo do mundo com o qual temos que fazer. Não existe tal fato, nenhum momento de nossa vida, que não possua uma forma física ou psíquica, que não pode ser considerado como um corpo dimensional, um movimento no espaço, ou como uma ideia, concepção ou sentimento. Mesmo quando algo tem a ver com que há de metafísico, como “substâncias” ou espírito, matéria ou força, nunca podemos libertá-las dessas duas formas únicas – psíquicas ou físicas – que nossa intuição organiza alternadamente, onde ele traz e classifica tudo o que pode levar em posse, de modo que uma terceira categoria de fenômenos, que não seria nem psíquica nem física, nem um estado de nossa consciência, nem qualquer movimento material, é tão impossível imaginar quanto uma quarta dimensão, ou o tempo parado em seu curso.

Devemos, portanto, admitir de antemão, sem recorrer a experimentos especiais e à análise subsequente, que os fenômenos sociais, pelo próprio fato de serem fenômenos, que entram no domínio da nossa percepção e da nossa vida, devem ser submetidos a estas duas formas principais da nossa intuição, dividir totalmente entre eles, sem constituir uma terceira categoria, que se distinguiria deles. Além disso, a experiência, a observação dos fatos concretos, concorda inteiramente com essa dedução. Considere qualquer fenômeno social, ele será apenas: ou uma coisa de um caráter físico como a terra, os bens, o trabalho muscular, ou, as ideias e os sentimentos, aparecendo no aspecto das leis, os costumes, tendências coletivas. Em todo o campo da vida social, não encontraremos nada que seja social sem ser ao mesmo tempo um fenômeno material ou mental. O “social” nunca tem uma forma especial em nossa intuição, não se opõe às coisas do espaço e dos estados de consciência, mas é encontrado nelas, coexiste com suas formas e aparece para nós nessas formas únicas. Mercadoria, um fenômeno por excelência social, é ao mesmo tempo um objeto material comum, o que pode ser perfeitamente considerado do ponto de vista da física, mecânica ou química, e além desta forma intuitiva, não pode ser concebido nem acessível à nossa experiência. Da mesma forma, todas as ideias que governam a vida da coletividade humana, apesar de sua natureza social específica, não possuem, no entanto, qualquer outra forma de existência que a forma psíquica, a dos estados de nossa consciência, e embora eles constituam o objeto de uma ciência sociológica distinta, eles podem, no entanto, passar por uma análise psicológica, assim como os fenômenos da vida da consciência individual. A ideia de Deus, da liberdade política, da propriedade etc., essencialmente imbuída do caráter social, da vida coletiva dos homens, não poderia ser restrita à consciência individual do homem, e ainda assim toda a sua essência social não se manifesta em outros lugares além de milhares de estados psíquicos, espalhados entre os cérebros individuais dos homens, e é em vão que devemos buscar uma manifestação pura e distinta disso.

Se, no entanto, todos os fenômenos sociais estiverem totalmente divididos entre essas duas categorias únicas e essenciais de nossa intuição, sem deixar nada que não seja nem físico nem psíquico, todavia todos têm um atributo específico, que os distingue uns dos outros, de modo que, mesmo de maneira intuitiva, nos impedimos de identificar fenômenos sociais com fenômenos físicos e psíquicos. Os fenômenos físicos só se tornam sociais quando os espiritualizamos, quando se tornam portadores de trabalho ou de necessidades humanas, quando, sem perder seu caráter material e físico, são ao mesmo tempo, símbolos da inteligência, do pensamento. Qualquer objeto da indústria ou presente da natureza pode ser considerado apenas como um fenômeno físico, até que seja elevado à dignidade de um produto do trabalho humano final, ou seja transformado em valor de utilidade, isto é, em encarnação de certos desejos humanos; então ele socializa. O ouro, considerado como uma coisa, um metal, um grupo de moléculas com certas propriedades químicas, não tem caráter social; adquire-o ao mesmo tempo que o caráter simbólico do trabalho e das necessidades humanas, tornando-se o equivalente dos bens que cristalizam neles os esforços constantes de nossa criação. Daí também a variabilidade histórica de seus destinos: desprovida de qualquer influência sobre a vida coletiva nas antigas comunas das tribos bárbaras, tendo uma esfera muito restrita de atividade no terreno da economia natural do feudalismo, torna-se uma força vital todo-poderosa na sociedade capitalista, quando o trabalho humano, além da esfera do lar do produtor, a esfera de suas necessidades pessoais, transforma o ouro na incorporação de seu caráter abstrato, como símbolo de todas as necessidades possíveis e de todos os esforços produtivos do homem. À medida que seu caráter psíquico se torna mais rico, de um valor específico de utilidade para o valor da utilidade em geral, ao valor abstrato da troca, ao significado de um equivalente universal, em que são encontradas todas as necessidades individuais concretas, presentes e futuras, reais e possíveis, é reforçado ao mesmo tempo o caráter social do ouro, de uma coisa meramente material, transformando-se num ser quase místico, numa divindade que governa o mundo das almas humanas, que existe e age mesmo não estando presente na forma de um metal, pela simples razão de uma transmissão oculta de seu poder para todos os tipos de documentos de desconto, notas bancárias e ações. Da mesma forma, encontramos o caráter psíquico em todo o domínio de fatos materiais, como condição indispensável e única de sua socialização. Não apenas os objetos materiais, mas também as forças da natureza, que pode ser sempre trazido de volta ao movimento das moléculas da matéria, consequentemente, aparecendo diante de nossa consciência com o caráter das coisas, as forças mais estranhas para nós, desprovidas de toda a “humanidade”, como a gravidade, a afinidade química, o calor, a eletricidade, no entanto, eles se tornam fenômenos sociais, quando são adaptados às necessidades humanas, para um fim, quando, aprisionados na técnica produtiva, representam o símbolo da inteligência das gerações vivas e passadas conjuradas na matéria. Em uma palavra, o fenômeno físico torna-se social quando é espiritualizado, quando, não deixando de ser uma coisa, isto é, algo externo e espacial, opondo nossa consciência, adquire ao mesmo tempo um caráter psíquico.

Por outro lado, um fenômeno psíquico se torna social, quando não deixa de ser um estado interno de nossa consciência e de ser percebido como tal, adquire, não obstante, um caráter objetivo, ele se emancipa da ação imediata de nossa vontade e se impõe de fora, como se fosse uma coisa certa – um desejo – elevado à dignidade do fato social. Por que difere de um estado individual de minha consciência, por qual sinal eu reconheço seu caráter social? Em seu conteúdo, em seus elementos constitutivos, em sua maneira de reagir externamente, nas associações que se agrupam em torno dele, não encontraremos nenhuma diferença; em ambos os casos, o dado estado psíquico é submetido à mesma análise psicológica, à mesma descrição; para um e outro, é possível rastrear o mesmo processo e solicitar o mesmo diagnóstico. A psicologia da minha fome, em suas características constantes e principais, é ao mesmo tempo a psicologia da fome em geral, da fome social, repetida de muitas maneiras nos diferentes cérebros humanos. As mesmas ideias e interesses, agrupados em torno da propriedade, do casamento e da família, na alma de um indivíduo, encontram sua expressão fiel nas leis que regulam as relações de propriedade, as da família e do casamento, de modo que, motivando psicologicamente uma certa lei existente, simplesmente fazemos a análise do lado correspondente da alma de certo tipo de homem. Propagando socialmente uma certa ideia, com base em um determinado sentimento coletivo, buscamos indícios na psicologia individual, e as ideias que podemos inculcar nos indivíduos, tomando como base um determinado sentimento, os encontramos também socialmente associados uns aos outros. A ideia do comunismo, por exemplo, ligando-se aos interesses da vida dos indivíduos é, ao mesmo tempo, como um fenômeno social, ligado aos interesses econômicos de toda uma classe. As diferenças individuais que marcam cada fenômeno psíquico em oposição ao seu caráter social constante, não enfraquecem esta afirmação de que não é em uma diferença de conteúdo psicológico que a razão para a socialização de um estado mental deve ser buscada. Porque posso perfeitamente adaptar minha mente a uma dada concepção social, a esse modelo constante que se encontra nas fórmulas legais, nos programas, nos dogmas das religiões e, apesar disso, eu sempre pude discernir a mesma ideia, como um indivíduo para mim, e como um social, embora em seu conteúdo e forma, esses dois aspectos dessa ideia sejam inteiramente adequados. Como um indivíduo, está sujeita à ação de minha vontade interior, ele pode ser transformado com o meu raciocínio, enfraquece e fortalece a influência dos sentimentos que me animam; Além disso, a sua própria existência, a força e a importância que tem sobre o fluxo da vida, dependem inteiramente de toda a sistematização psíquica que é minha alma, minha inteligência, minha maneira de pensar e sentir, minhas inclinações individuais, a quantidade e a qualidade de conhecimento que possuo; todo conceito moral, como fenômeno psíquico, está sujeito a tamanha variabilidade na consciência de todo homem, ele adquire ou perde sua força vital, desaparece ou se fortalece, muda seu conteúdo e sua cor emocional, de acordo com a sociedade dos outros conceitos e sentimentos que ela encontra em nossa consciência; em uma palavra, ela se adapta continuamente à totalidade de nossa alma, às suas inclinações mais íntimas, e podemos perceber sua influência no curso de nossa vida, somente quando ela é adaptada aos outros elementos de nossa alma, unidos ao nosso conhecimento e aos nossos sentimentos, quando reconhecemos diante de nós o seu valor. Como social, por outro lado, zomba completamente de nossos raciocínios e sentimentos, e com a indiferença de algo se opõe a nossos desejos e negações. As ideias de Deus, de um amor legítimo, de um poder de Estado, apesar de meu ateísmo e liberalismo filosófico, e, embora já tenham perdido todo o valor para minhas convicções e sentimentos, por meus motivos interiores e, como fenômeno psíquico, não podem mais desempenhar nenhum papel em minha vida, no entanto, como sociais, contidas nas leis, nas instituições, na opinião pública, não deixam de exercer sobre mim sua pressão objetiva, para se imporem em minha consciência com a brutalidade de uma coisa, de objetos do lado de fora, e isso com uma força maior, que eu não os nego mais como um fenômeno psíquico, como minha própria crença, assim como a escuridão da noite ou o espaço que nos separa do objetivo, escutamos nossas maldições com total indiferença e nos opomos mais ainda a essa vontade, que essa vontade deseja aniquilá-las ainda mais.

Esse caráter objetivo dos fenômenos psíquicos socializados se manifesta claramente quando comparamos as diferentes fases evolutivas do mesmo fenômeno. Enquanto uma ideia permanecer uma propriedade individual da consciência humana, um estado psíquico comum, está sujeito a todas as ações de nossa vontade, é variável, facilmente perecível, porque atrai os sucos de sua força vital em nossos sentimentos e pensamentos, constantemente obrigado a adaptar-se a eles, a nos preocupar de acordo com a nossa aprovação, como única base do seu ser; o menor desvio em nossa maneira de pensar pode aniquilá-lo e fazê-lo degenerar completamente. É, então, de natureza essencialmente subjetiva, suspensa continuamente do cordão umbilical de nossa vontade interior. Agora, ao formular-se em palavras e passar em uma quantidade maior de cérebros, torna-se socializado, adquire um caráter cada vez mais objetivo, liberta-se cada vez mais dos vínculos psíquicos em meio aos quais permanece nas consciências individuais, passa de uma variabilidade contínua para uma forma constante; o cordão umbilical da vontade individual, que até agora lhe transmitia o sopro único da existência, quebra, e a ideia começa a vida independente do fenômeno social, purificada das variabilidades de suas vidas privadas, consolidada, fortalecida, cristalizada em um certo slogan de luta social, em uma lei, uso, partido político ou instituição. Quanto menos socializado, menos exerce pressão objetiva sobre os indivíduos, e quanto mais ela se importa com o respeito deles, a adaptação à sua vida interior, o conteúdo de suas almas; é nesta fase que as ideias estéticas, que, em todos os fenômenos psíquicos sociais, talvez o mais fraco de seu objetivo, caráter coercivo, de coisas que são impostas a despeito da vontade, de acordo com o grau de sua socialização, porque, nem na opinião pública nem nos códigos de leis ou nas correntes coletivas, eles não encontram para eles um lugar muito preciso. Na mesma fase estava o primitivo cristianismo dos apóstolos, bem como toda ideia revolucionária em seu início, até que se organize em uma igreja ou partido e abrace grandes multidões; o fenômeno psíquico simples e o fenômeno socializado ainda não são discernidos um do outro de uma maneira bastante precisa; a individualidade dos seguidores ainda tem uma grande importância para a vida da ideia. Por outro lado, no nível mais alto de socialização, a natureza coercitiva da ideia é tão poderosa, que pode com uma força elementar, oprimir os indivíduos que não admitem a existência dela em seu interior, que pode se opor à liberdade individual do homem, como se fosse outra natureza moral, que o envolvesse de todos os lados com uma pressão fatal de coação; é o que acontece, por exemplo, para certas ideias morais, especialmente aquelas que se relacionam com a propriedade, com a família, com as relações sexuais, e que conseguiram socializar de muitas formas, na religião, códigos legais, morais e doutrinas científicas. Aqui, é muito fácil ver que a natureza social de um certo conceito é seu caráter objetivo, impondo-se externamente, sua existência independente da aprovação subjetiva de sua razão de ser, de adaptação a nossos sentimentos, necessidades e pensamentos. Sem esse estigma objetivo, qualquer estado mental, mais ligado à vida social, só possuirá o caráter de um fenômeno psíquico comum, de um estado de nossa consciência, ao qual podemos, no máximo, dar origem social, mas nada além disso.

Um atributo específico dos fenômenos sociais, que sem separá-los dos fenômenos físicos e psíquicos em uma terceira categoria, distingue-os deles, é, portanto, como uma síntese dessas duas características: os fenômenos físicos se tornam espiritualizados ao se tornarem sociais, os psíquicos tornam-se objetificados; ambos se tornam coisas psíquicas. – Nesta combinação não há nada artificial; não surge como resultado de uma obra de pensamento, mas se impõe espontaneamente à nossa intuição. Se na vida cotidiana podemos perfeitamente, sem a ajuda de uma análise científica, para distinguir uma “mercadoria” de um objeto físico comum, dinheiro do metal, meu conceito – da lei, ou do meu sentimento – de um dever religioso, é que, no primeiro caso, as coisas cruas nos mantêm a linguagem das necessidades humanas, no segundo caso, os estados de consciência percebidos em nosso interior exercem sobre nós uma pressão externa, opõem-se como independentes de nós, antes que possamos perceber essas diferenças. Pois este duplo caráter dos fenômenos sociais se apresenta à mente humana pelo modo puramente intuitivo, mesmo quando não percebemos isso, sentimos pela intuição, sem a ajuda de qualquer raciocínio, o caráter espacial dos fenômenos físicos. Essa é a única pista dada a nós pela própria natureza dos fatos sociais, independentemente de como julgamos e das teorias científicas das quais somos partidários, segundo as quais sempre os reconhecemos como sociais.

IV

Por causa dessa natureza psíquico-objetiva dos fenômenos sociais, a hipótese de uma consciência coletiva supra-individual, de uma consciência que seria como abraçar a nossa própria, sendo, em comparação com a nossa, o que é para as hipotéticas “sensações inconscientes”. Para expressá-lo nos termos de Lázaro, pode-se dizer que o indivíduo humano é um povo; assim como as pessoas, é uma coletividade composta; “Uma ideia é para a alma individual o que a alma individual é para a alma social”. Mais especificamente, no entanto, o conceito de “alma social” poderia ser comparado às “sensações elementares inconscientes” que são admitidas na psicologia contemporânea, àquelas “infinitesimais psíquicas”, que, como os corpos dos átomos, são compostas de todos os estados de nossa alma. Pois essas sensações, embora totalmente inacessíveis à nossa consciência, completamente homogêneas e simples em sua essência, correspondendo a simples choques nervosos, as “infinitesimais físicas”, são, no entanto, sensações, para si mesmas, elas se apresentam como um fenômeno psíquico, elas desenham a razão de sua existência a partir de sua própria consciência elementar, distinta da nossa. A síntese dessas consciências elementares é nossa consciência; deles, como os corpos de elementos químicos, compõem-se nossas ideias, representações e sentimentos, e o que percebemos em nós mesmos, como estados psíquicos simples e homogêneos, eles são, na verdade, aglomerações de uma quantidade infinita de elementos heterogêneos, átomos sensoriais imperceptíveis para nós. Portanto, a unidade de nossa consciência é uma unidade aparente, uma unidade de caráter sintético, como a unidade do organismo e, sob ele, milhares de pequenos seres escondem sua existência, fervendo com uma vida psíquica independente, assim como no todo vivo do organismo, esconde-se uma grande quantidade de células de microrganismos que, embora entrem nos processos biológicos do todo, possuem, no entanto, vida própria e distinta, sua força de geração e assimilação. Na mesma relação está nossa consciência individual, para a consciência social. Cada um de nós sente e pensa separadamente dos outros, à sua maneira; na medida em que há indivíduos humanos, tantas esferas fechadas de consciência mutuamente impenetráveis umas às outras; mas, sendo incapazes de reagir diretamente uns aos outros, eles são sintetizados em uma consciência social mais elevada, similarmente às mônadas de Leibniz, que cooperam umas com as outras através de Deus, ou as sensações elementares que fazem isso através da nossa consciência. É, portanto, essa consciência coletiva, mais elevada, proveniente da síntese da nossa, e distinta destas, embora as contenha em si mesmas, como o produto de elementos químicos torna-se um corpo diferente desses componentes, tendo novas propriedades, é essa consciência que seria a base apropriada dos fenômenos sociais, a fonte da qual eles extraem a possibilidade de sua existência, uma vez que o fenômeno social, embora de natureza psíquica, é, no entanto, oposto aos nossos estados individuais, é independente de nós, tem uma resistência objetiva à nossa consciência. De onde vem que nossa vida individual interior nunca é inteiramente adequada à vida social; o indivíduo julga e sente de uma maneira diferente da sociedade. A política não corresponde à moral dos indivíduos; os indivíduos de uma determinada nação manifestam outras propriedades morais do que a nação inteira agindo coletivamente; leis e costumes dominantes nem sempre concordam com ideias individuais, mesmo da maioria dos homens; necessidades e capacidades sociais, contidas em mercadorias e ferramentas, muitas vezes têm uma discórdia completa com as capacidades produtivas e padrão de vida dos indivíduos.

No entanto, essas duas hipóteses, a de “sensações elementares” sendo sintetizadas em nossa consciência, e a de “consciência social” sendo uma síntese da nossa, que são tão profundamente análogas uma à outra, são, desde o nascimento, maculadas por um pecado filosófico mortal: consiste em procurar algo que, sendo totalmente estranho e inacessível à nossa consciência, possa servir, no entanto, para explicar os fatos de nossa experiência, consequentemente, para explicar algo que tem um valor positivo de existência apenas como o objeto de nosso pensamento. Ambos parecem esquecer essa verdade, que a consciência humana, pela qual tudo, com o qual estamos lidando, manifesta seu ser, não pode mais ser traduzida em nada; que, sendo incapazes de conhecer as existências liberadas de nosso pensamento, é em vão que buscamos explicações do pensamento humano, procurando reduzir fenômenos à ultra-fenomenalidade. Ambos estão se afastando da realidade experimental única, incluída na esfera de nossa consciência, e se perderão na metafísica das “consciências” infinitesimais ou supra-humanas, onde todo o conteúdo de conceitos, sendo relegado fora da intuição, e consequentemente não correspondendo à nossa intuição, deve ser completamente aniquilado, deixando apenas um vazio abstrato de palavras.

Assim, a hipótese dos “psíquicos infinitesimais”, sensações inconscientes, retiram essa consciência elementar de todos os atributos da consciência. A sensação que é inacessível para nós, é uma sensação em si mesma, parece a si mesma, constitui algo psíquico em relação a si mesma. Sendo ao mesmo tempo o elemento infinitesimal de todos os estados mentais, um átomo psíquico, simples e homogêneo, como a mônada de Leibniz, exclui toda complexidade e heterogeneidade, o que significa que não pode ser transformado, que é invariável; não pode sentir-se como sujeito, porque é incapaz de opor à heterogeneidade uma unidade que a conectaria (o que cheira, é confundido aqui inteiramente com a própria sensação); não pode se perceber como um objeto, porque a ausência de heterogeneidade impossibilita a existência de qualquer pensamento, o que só pode aparecer como síntese de elementos heterogêneos. Portanto, essa consciência elementar, o “sujeito-sensação” inacessível para nós, é de um tipo muito estranho; é uma consciência que, não estando sujeita a mudanças, não constituindo nem sujeito nem objeto, não pode saber nada ou sentir; que, sendo incapaz de conceber a si mesma, não é nada real para si mesma. Consequentemente, no conceito de “consciência elementar”, aparece um vazio completo para nossa intuição; Nenhum conteúdo de nossa experiência pode encontrar um lugar onde o pensamento humano tenha sido banido, esse instrumento único de nosso conhecimento. É também por isso que essa concepção, introduzida na psicologia, não explica nada, não exclui nenhuma das dificuldades existentes; poderíamos também admitir como componentes de nossas representações – simples choques nervosos, vibrações da matéria, o físico infinitesimal, desprovido de qualquer revestimento espiritual; pois são tão estranhos à natureza de nossa consciência, tão distantes do que percebemos em nós como psíquicos, que os fenômenos materiais e todo o parentesco desses “elementos” com a alma humana são simplesmente reduzidos a uma única denominação “consciência”. Além disso, esse conceito, entrando na análise dos fenômenos com seu vazio enigmático, projeta em toda a nossa vida psíquica uma sombra de misticismo extravagante, que não pode ser justificado por nenhuma necessidade. A unidade de nossa consciência, tornada imediatamente conhecida por nós, intuitivamente certa, a transforma em uma unidade de natureza aparente e sintética; quando sinto alguma coisa, então, neste fato aparentemente simples, eles escondem as sensações heterogêneas, inteiramente diferentes das minhas, de milhares de pequenos seres, nos quais todo estado da minha consciência é decomposto. Nas profundezas do meu pensamento se dissimula, imperceptível para mim, a vida de uma grande aglomeração desses seres elementares, e o que eu acho que percebo como sendo minha representação, meu próprio estado psíquico, não é o que eu realmente vejo, que constitui o verdadeiro conteúdo do dado momento da alma, ainda não sinteticamente transformado para nosso uso; assim como as cores ou sons são de fato apenas vibrações do éter ou do ar com certas propriedades quantitativas, já que as combinações orgânicas de qualidades heterogêneas são apenas sistemas quantitativamente diferentes de alguns átomos, como os ácidos e os sais aparentemente homogêneos, no entanto, constituem uma complexidade de elementos de natureza diferente. De modo que o mundo dos fatos psíquicos, o mundo de nossa experiência interior, se torna um mundo de ilusões, não apenas em relação à “coisa em si” incognoscível, mas também, em relação a essa realidade fenomenal elementar que, escondendo-se inteiramente de nosso pensamento e sensação, em seres infinitamente pequenos, cobertos por um mistério impenetrável de uma consciência específica, peculiar a eles, constitui o conteúdo essencial de nossa vida. vida espiritual. Nossa experiência interior, portanto, não diz respeito a fenômenos verdadeiros, mas a sua aparência sintética; o fenômeno, longe de ser um objeto, um gerador de nosso pensamento, uma existência concebida em nossa consciência, é um ser místico, inacessível à nossa observação imediata, estranho à nossa intuição; de modo que, eventualmente, as fronteiras entre a realidade experimental e a metafísica do matiz místico desapareçam.

Os mesmos erros de crítica filosófica são encontrados na hipótese da “consciência social”; lá, buscamos a compreensão dos fatos vitais nas consciências infinitesimais, aqui, por outro lado, na consciência supra-humana. A própria concepção de “consciência social” é de nascimento ilegítimo. Nós o formamos com a ajuda de uma analogia emprestada de nossa consciência individual, baseada no fato de que fenômenos sociais, embora de natureza psíquica, e que podem ser expressos apenas em termos psicológicos, são, no entanto, opostos a estados de nossa alma; não podemos, portanto, considerá-los como produtos individuais, nem como uma mera soma de individualidades, mas como fenômenos de uma consciência específica sobre-humana, sendo uma síntese de consciências individuais e, portanto, qualitativamente diferentes delas. A analogia encontra aqui um obstáculo especial. O que chamamos de consciência não possui em nossa intuição nenhum conteúdo compreensível, já que é apenas o lado puramente negativo de todos os fenômenos, o elemento contínuo e constante que se opõe à infinita variabilidade de objetos. É um termo que, silencioso sobre o conteúdo do objeto visualizado, fala apenas daquilo que é percebido, portanto, do seu lado negativo; quem testifica essa coisa sozinho, que o fenômeno dado é um fenômeno, um objeto de pensamento para o sujeito, que conhecemos imediatamente como sendo o nosso “eu”. Observando nossa consciência, percebemos apenas fenômenos internos, sentimentos, ideias, impressões e que, por si só, constituem o conteúdo de nossa intuição; por outro lado, nunca podemos perceber o lado subjetivo desses fenômenos, para o qual eles existem como fenômenos, aquele sujeito pensante que, sob pena de aniquilação do pensamento, nunca pode ser compreendido por ele. Em outras palavras, para usar as expressões de Kant, se a consciência em si (e não os fenômenos que condiciona universalmente) poderia constituir o objeto do pensamento, este objeto seria o sujeito determinante, e não o sujeito determinável, teríamos o conhecimento da coisa em si, o númeno. A concepção de “consciência” pode, portanto, significar apenas a negação de tudo o que existe para nós como um fenômeno, como um objeto de pensamento; e como o fenômeno abrange todo o mundo das existências que nos são acessíveis, portanto, o conceito de “consciência” é um conceito-limite, extremo (Grenzbegriff), onde o pensamento humano se exaure completamente e não pode liberar mais nada dele e, portanto, em nenhum caso ele pode ser usado para construir uma nova concepção. Na intuição desse conceito, encontramos apenas o sentimento de nosso próprio “eu”, opondo tudo o que percebemos, não pode ser traduzido em nada, de modo que esse conceito, colocado fora de nós, perde todo o suporte real. Mas mesmo supondo que ainda retenha um certo significado deduzido da analogia, ainda assim nos traz dificuldades impossíveis de resolver. Podemos considerar essa consciência social sobre-humana apenas de duas maneiras: ou como existindo independentemente da nossa, e então degenera em uma concepção de “deus”, ou como uma síntese de consciências individuais, como é admitido por muitos sociólogos contemporâneos. Mas quando dizemos: síntese, não é permissível esquecer que a essência de todas as coisas compostas deve ser encontrada em seus elementos; porque os componentes não podem diferir essencialmente de seu produto, e “o caráter de qualquer composto é determinado pelo caráter de suas partes componentes” (Spencer), de modo que a unidade de certos fenômenos deve implicitamente ter os mesmos atributos que se manifestam explicitamente em sua combinação, e isto por causa desta lei lógica, que coisas absolutamente diferentes não podem vir uma da outra. Uma síntese é apenas o lado formal de algo essencial, é o desenvolvimento de uma certa possibilidade implícita nos componentes e não pode criar nada absolutamente novo. Assim, por exemplo, forças atrativas latentes em moléculas se manifestam em um corpo químico, como sua dureza ou formas cristalinas; a vida latente nas granulações do protoplasma, desenvolve-se nas funções do organismo; e nos átomos de carvão, oxigênio, nitrogênio e hidrogênio, que ocorrem sob certas condições como elementos constitutivos do protoplasma, deve estar implícito – como uma das propriedades essenciais do seu ser – a possibilidade desta síntese específica que leva a vida dentro dela; seria igualmente difícil imaginar que esses elementos, em sua essência, são completamente estranhos ao caráter vital da síntese, do que supor que uma única justaposição de quaisquer elementos, uma combinação, por exemplo, átomos de ferro e cloro, poderia manifestar uma vida. Assim, de acordo com essa regra geral, a consciência social, considerada como uma síntese de consciências individuais, embora de natureza distinta e superior a seus componentes, deve, no entanto, pertencer essencialmente ao seu ser, deve estar envolvido na consciência individual, em nosso próprio “eu”, para poder desenvolver, manifestar-se nos fatos sociais.[4]

Mas o que significa estar “envolvido em nosso eu” se considerarmos que esse “eu” não pode constituir um objeto de pensamento, uma concepção? Isso significaria: estar em nossa intuição imediata do próprio “eu”, naquele sentimento mais íntimo que temos, e isso não nos diz nada, a não ser isto apenas – que sou eu – e dizer tão pouco, diz, no entanto, de uma maneira tão clara e precisa, que nunca sentimos a necessidade de perguntar “o que o eu significa” ou duvidar “se é realmente eu”; assim, sentindo a nós mesmos, sentiríamos ao mesmo tempo a consciência social, uma espécie de segundo “eu”, maior e dominante, como um todo domina a parte, sentiríamos em nosso “eu” alguma coisa, que, estando essencialmente ligado a ele, manteria, no entanto, sua distinção manifesta de algo mais, ainda mais manifesta, já que não seria percebida no fenômeno, mas sentida no ser percebendo-se, no sujeito. Para nos expressarmos nos termos de Kant, isso poderia ser formulado logicamente: não “eu penso como sujeito”, mas “penso como um predicado do sujeito”, o que seria contrário à natureza do sujeito que, sendo incognoscível, sendo a negação de todas as coisas, sendo a “coisa em si” opondo toda a fenomenalidade, não pode conter partes, nem componentes heterogêneos, nem qualquer relação.

O erro cardinal cometido pela hipótese da “consciência social”, usando nossa consciência para a construção de um novo conceito, o, força a transformar a consciência, essa linguagem universal que não pode ser expressa por nada, porque só ela expressa tudo, para transformá-lo em algo bastante diferente, em um determinado objeto de pensamento, em algo cognoscível, acessível à análise, dotado do caráter de um fenômeno. A nova concepção assim produzida é, de antemão, condenada a uma completa incapacidade de elucidar os fatos. – Como, de fato, podemos reconciliar essa consciência, distinta da nossa, de uma natureza sintética em que nascem e pelos quais existem os fenômenos sociais, com o principal atributo desses fenômenos: sua manifestação intelectual, sua existência para nós? Como os fenômenos sociais, estranhos à nossa consciência, têm sua sede numa consciência superior, sintética, mas acessível à nossa intuição e conhecimento, e eles entram tão intimamente em nossa vida, submetendo-se a nossa ação e reagindo sobre nós, ao passo que, de acordo com a crítica filosófica, tudo o que permanece fora de nossa consciência, na região metafísica, não pode ter valor positivo da existência? – Esta é a questão insolúvel, análoga àquelas que atormentaram escolásticos e teólogos, discutindo as “substâncias” da matéria, da alma e de Deus, e às quais, no entanto, a hipótese da “consciência social” deve necessariamente levar. – O mundo social, se realmente, como a hipótese em discussão exige, outra substância, maior, constituindo seu substrato, se uma consciência sobre-humana, vinda da síntese da nossa, e não nossa, era a razão suficiente para sua existência, o mundo social, por esse mesmo fato, deveria permanecer completamente inacessível a nós, como transportado para a esfera metafísica dos seres libertados do nosso pensamento e, portanto, não o mesmo, que percebemos em nossa vida como sendo social, não seria esse mundo social que encontramos em nossa experiência cotidiana, nos sentindo em casa entre nós e ele estenderia o mesmo abismo, que nos separa da “coisa em si”, escondendo-se por trás dos fenômenos. – Então, quando nos permitimos criar um mundo ultra-fenomenal, perdemos ao mesmo tempo o propósito para o qual esse luxo da nossa imaginação foi realizado, que é a explicação dos fatos reais de uma certa categoria, fatos de nossa própria vida, retornando à nossa experiência. A hipótese discutida erra completamente esse objetivo. Removendo o objeto de estudo da esfera acessível a nós, transportando-o para uma consciência superior, ele não explica o caráter social daqueles fatos de nossa consciência, que percebemos como sociais; ao lado dos supostos “fenômenos” metafísicos (para nos expressar rigorosamente de acordo com o espírito da presente hipótese), permanecem intactos, separados de seu domínio, os fenômenos sociais próprios, os dados de nossa experiência. Tendo imaginado da maneira mais completa um certo mundo hipotético, existindo fora do nosso pensamento, não iremos, contudo, abordar para ele um único passo de compreensão do que é imperativo para a nossa intuição, não implica em nossa vida, somente por causa de sua manifestação no pensamento.[5]

V

Antes, então, que tentamos elucidar a natureza dos fenômenos sociais e esse caráter objetivo e psíquico que os distingue de todos os outros e nos faz supor ao mesmo tempo, que ela esconde algo diferente de fenômenos psíquicos ou materiais comuns, devemos acima de tudo fazer essa reserva, que é nossa única consciência individual, que pode ser considerada razão suficiente para sua existência, como a única fonte onde os fenômenos sociais atraem seu ser; que não está fora do homem, numa mente coletiva abstrata, mas no homem real e vivo, nos cérebros humanos concretos, que toda a vida social acontece e que não excede seus limites. Esse é o princípio do fenomenalismo social: a existência de fenômenos sociais reconhecidos equivalentes à sua manifestação em nosso pensamento; o único princípio que definitivamente exclui todos os “deuses” do reino da vida social, que eles se chamam: Providência Teológica, ou se escondem sob o termo científico de um espírito de raça ou uma razão de Estado. No entanto, embora reconhecendo nos fenômenos sociais uma pura realidade experimental concebida apenas em nossa consciência, é impossível, como mostramos acima, identificá-los com fenômenos psíquicos, considerar os fatos sociais como nada mais do que uma repetição múltipla de nossas ideias ou sentimentos individuais, e tratar a vida social como um ramo apenas da psicologia. Porque, muitas das nossas necessidades e estados mentais, tais como a necessidade de ar, luz, movimento, como os sentimentos estéticos, os estados da alma que precedem o pensamento, embora se repetindo em todo o mundo, não se tornaram fenômenos sociais. A história, além disso, nunca pode ser reduzida a uma ação recíproca das almas humanas; por trás dos indivíduos que ela emprega como tecido vivo para bordar suas imagens, sempre se vê como certas forças naturais, nas quais a alma humana está inevitavelmente entrelaçada, muitas vezes servindo como instrumentos e expressão para elas; e toda tentativa de tratar a vida social como uma questão de nossas convicções e tendências individuais, sempre rompe com esse obstáculo, que essas mesmas convicções e tendências necessariamente têm sua fonte na vida social, e que não poderiam acontecer sem ela. O mero fato da coexistência em outros de meu estado interior não muda em nada sua própria natureza do fato psíquico individual, até que essa coexistência adquira um caráter objetivo, desengajando-se das profundezas das almas individuais; pois, de outro modo, encontraríamos na vida social tudo o que flui para as profundezas de nossas almas, todas essas correntes anônimas, essas emoções indefinidas e essas ondas de atuação, que continuamente passam abaixo do limiar de nosso pensamento; por outro lado, a própria vida social seria uma vida essencialmente subjetiva. É por isso que o fenômeno social nunca pode ser identificado com a soma dos fenômenos psíquicos; individual (sendo ele mesmo psíquico), ele sempre se opõe à nossa vida interior por sua vida autônoma, por sua pressão objetiva, por toda sua independência de nossa vontade interior.

Mas esse mesmo caráter objetivo do fenômeno social, pelo qual é tão oposto a um estado particular de minha alma quanto a sua múltipla repetição no total das almas humanas, é condicionado ao mesmo tempo necessariamente por essa repetição múltipla de um estado subjetivo na massa de cérebros individuais. Por um lado, portanto, o fenômeno social, embora não se identifique com o estado psíquico individual, ainda possui seu equivalente psicológico individual, por causa disso, apesar de sua objetividade, ele intimamente se une à vida do indivíduo; a necessidade social, por exemplo, incorporada em certa mercadoria, é ao mesmo tempo minha própria necessidade, real ou possível, que pode ser compreendida e que poderia existir mesmo que não houvesse ninguém além de mim; nas leis encontramos as ideias e os interesses que, mesmo que não tenham para nós um valor vital, como o nosso, no entanto, em cada caso, sempre a um valor psicológico, são compreensíveis e de alguma forma se apegam aos motivos internos de nossa conduta. Por outro lado, o fenômeno social, existente apenas na consciência individual de cada homem, como exigido pelo princípio do fenomenalismo, no entanto, é necessariamente condicionada por uma repetição múltipla de seu equivalente psico-individual nos outros cérebros humanos, sem os quais perde seu caráter objetivo, identificando-se com um estado psíquico comum. O fenômeno social é o que é (isto é, um certo objeto psíquico) para minha consciência, graças apenas a isso, que é – psicologicamente – a mesma coisa para as consciências dos outros; que essa mesma necessidade ou ideia que percebo em mim, como o conteúdo de um dado fato social, também posso perceber em muitos outros indivíduos. Porque, é claro, que se algum fato, assemelhando-se por sua natureza aos fatos sociais, um certo objeto de utilidade, ou uma certa ideia, se refletisse apenas em minha alma, seria útil ou compreensível para mim, e, por outro lado, privado de conteúdo e insignificante como uma necessidade ou conceito para todos os outros, que tal fato permaneceria essencialmente individual e não poderia entrar na vida social. Poder-se-ia assim dizer que o fenômeno social possui duas faces: por um se dirige às massas humanas, como uma abstração que se resume nele e congela de forma constante a variabilidade individual dos estados psíquicos, o tipo de uma espécie em que as necessidades individuais, sentimentos e conceitos de homens diferentes se reconciliam e se encontram; através do outro, ele se comunica intimamente com a alma do indivíduo, atinge as profundezas individuais de cada homem, refletindo apenas sua própria necessidade, sentimento ou conceito pessoal. É, por exemplo, o valor de troca de uma mercadoria, oposta por sua forma constante e abstrata de preço, à utilidade variável que a mercadoria apresenta como objeto de consumo; é a lei formulada no código e atuando através de uma organização estatal, ou o slogan de uma luta social ostentada na bandeira de um partido, em oposição a esses interesses pessoais, ideias e sentimentos, sentidos particularmente por cada homem, com a sua própria variedade e que, no entanto, têm sua expressão comum nessa forma cristalizada, abstrata e pública, são todos encontrados nesta lei ou neste slogan. O que constitui o caráter objetivo do fenômeno social, é como um lar que, centralizando em si as semelhanças das almas humanas, opõe cada um separadamente e ao mesmo tempo a todos, como um objeto independente, provido de uma vida autônoma. O outro, seu caráter psicológico, é o elo que liga intimamente essa abstração objetiva à vida dos indivíduos, fragmentando-a em milhares de reflexões subjetivas; é o que eu acho na mercadoria como sendo minha própria necessidade, em uma lei, como meu próprio interesse, na ideia social, como minha própria concepção; é essa realidade imediatamente sentida nas profundezas da alma de todo homem, sem a qual o fenômeno social não teria conteúdo e pairaria como uma abstração vazia sobre a vida humana. Os dois lados do fenômeno social são, portanto, mutuamente e necessariamente complementares: sem o primeiro, ele passa inteiramente para o domínio da psicologia individual; sem o segundo, na metafísica ultra-fenomenal. Excluir um ou outro seria impossível, porque isso equivaleria a esvaziar a própria natureza do fato, ignorar as suas propriedades, que são impostas universalmente à nossa experiência.

No entanto, na sociologia contemporânea existem duas correntes, que parecem tender a dividir entre eles essa duplicidade das faces do fenômeno social e legitimar teoricamente apenas um desses dois caracteres que se complementam mutuamente. Nós falamos dos métodos representados por MM. Durkheim e Tarde. O Sr. Durkheim, contemplando a face objetiva do fenômeno social, seu caráter abstrato e coletivo, impondo-se de maneira coercitiva às consciências individuais como algo espontâneo e inteiramente independente deles, se esforça para banir toda a psicologia do domínio social. M. Tarde, por outro lado, vê apenas o caráter psicológico do fenômeno social, o lado de sua individualização em cérebros humanos, e considerando a “objetividade social” de Durkheim como uma “ilusão ontológica”, trata a sociologia como uma espécie de ramificação da psicologia, mantendo totalmente em seus capítulos a invenção e a imitação. O caráter artificial da distinção, esse estranho daltonismo que não permite a nenhum desses cientistas ver apenas um lado do fenômeno social, leva muito logicamente a resultados contraditórios, a métodos mutuamente exclusivos, mas nenhum deles, em nossa opinião, tem qualquer chance de prevalecer sobre o outro, pois a natureza real dos fatos requer seu complemento mútuo, protestando vigorosamente contra essa desfiguração imposta a eles, contra aquela meia-natureza psicológica ou objetiva que lhes é arbitrariamente atribuída pelos sociólogos franceses. Daí vem também o fato de que as definições sociológicas de Durkheim e Tarde, postas lado a lado, têm o efeito de uma antinomia filosófica entre os termos contraditórios em que a mente humana deve oscilar continuamente, sem nenhuma solução, logicamente forçada a admitir os dois. Essas duas teorias lutam umas contra as outras ferozmente; e ainda, através de cada uma delas, uma enfrenta uma face da realidade, que pede para ser completada pelo adversário; é um mal-entendido entre os dois lados de uma medalha, cada um dos quais finge constituir o todo. Se, então, M. Durkheim afirma que o fenômeno social é reconhecível a partir do fato de que ele existe independentemente de suas expressões individuais, e que possui um poder de coerção externa que exerce sobre os indivíduos; se ele sustentar que todo fato social existe apenas em um grupo tomado coletivamente e nunca pode ser identificado com as formas em que ele refrata em cérebros individuais, ele está totalmente certo, ele concorda com a intuição da própria vida, pois é somente a partir dessas propriedades objetivas que podemos discernir nossos estados psíquicos individuais dos fenômenos sociais. Mas M. Tarde também tem razão quando opõe a “ontologia” objetiva de Durkheim a essas afirmações: que, assim como um grupo social é composto apenas de indivíduos, da mesma maneira, um fato social é composto dos fatos individuais, que constituem seus elementos únicos e verdadeiros; que é apenas a variabilidade psíquica individual que pode emergir uma “objetividade” social de caráter constante. E assim como o fato de ter entendido mal o lado psicológico dos fenômenos sociais deve levar Durkheim aos erros de uma “ontologia escolástica” (para repetir a expressão de Tarde), considerar os fatos da vida coletiva como coisas metafísicas, existindo de uma maneira completamente independente de todas as consciências individuais, não sabemos por que e para quem, da mesma forma, o fato de ter ignorado o lado objetivo dos fenômenos sociais restringe o método de análise de M. Tarde à psicologia da imitação e da invenção (que, estritamente falando, é apenas psicologia individual, já que não pode haver outro), permite-lhe procurar em fatos individuais a causa determinante dos fatos sociais, o que é suficiente para remover qualquer base para a sociologia propriamente dita. Por exemplo, a aparência na história social das ferrovias tem, segundo Tarde, sua origem nos cérebros de Papin, Watt e Stephenson (ver “Sociologia elementar”) embora, considerado deste lado, só possa ser objeto de estudo para um psicólogo, enquanto a sociologia deve estudar tal fato do ponto de vista da época histórica de sua aparição, para buscar suas causas nas capacidades e necessidades sociais, se não quiser abdicar completamente em favor de sua própria psicologia, se deseja apreciar os fatos dados precisamente sobre esse lado, que por sua própria natureza escapa necessariamente ao método psicológico.

VI

Ao afirmar este fato, que instintivamente nos foi dado, a saber, que cada fenômeno social toma todo o seu conteúdo da coexistência de estados psíquicos individuais, opondo-se ao mesmo tempo a eles como abstração de suas semelhanças – abstração de um caráter objetivo, devemos, por isso mesmo, reconhecer que entre esses estados individuais dos diferentes cérebros humanos e os fenômenos sociais, nos quais eles podem se encontrar mutuamente, existe uma relação como elementos de síntese. – Pois seria suficiente que esses estados individuais coexistentes fossem de natureza incomunicável, mutuamente inacessíveis uns aos outros, como, por exemplo, todos os estados que precedem o pensamento, ou essencialmente diferentes, como os dos animais e dos homens, de modo que o fenômeno social não poderia surgir dessa coexistência. Cada indivíduo encontra em si mesmo seu próprio estado psíquico, e é somente através disso que o fenômeno social tem certo conteúdo e certo valor na vida humana; a totalidade, no entanto, desses estados individuais, tendo sua sede nos diferentes cérebros, não constitui o fenômeno social; esta se opõe a todos eles como algo absolutamente distinto, possuindo, no entanto, nenhum outro conteúdo que eles mesmos. As consciências individuais cooperam umas com as outras, constituem algo novo, todas encontradas neste produto. Tal relação é a relação dos elementos com sua síntese. – Assim, chegamos a resultados aparentemente contraditórios, embora tenhamos considerado apenas o que pode ser percebido no fenômeno social de maneira intuitiva, sem o auxílio de qualquer raciocínio: seu caráter psico-objetivo e sua bifacialidade – faces concretas de almas humanas escondidas sob a máscara de uma abstração. – Por outro lado – de acordo com o princípio do fenomenismo sociológico – existe apenas em nossa consciência, e por isso mesmo exclui de si qualquer consciência estranha à nossa, e por esse mesmo fato ele exclui de si qualquer consciência estranha à nossa, porque a nossa, que lhe dá existência, não admite nenhum elemento, é por excelência simples, como uma negação de toda fenomenalidade e de todas as relações, apenas adequado ao fenômeno em si. – Essas duas afirmações são mutuamente exclusivas; mas é precisamente nessa contradição, aparecendo tão visivelmente, que a solução do problema está, ao mesmo tempo, envolvida: – qual é o fenômeno social? – e que com o brilho da verdade se manifesta a definição do seu ser.

Pois se o fenômeno social é a síntese de consciências individuais e ao mesmo tempo exclui de seu seio toda “consciência” estranha à nossa, é somente porque essa “consciência social” nada mais é do que nossa consciência individual, que nosso “eu” e o “eu” de cada homem é apenas uma e a mesma coisa em sua essência. Consequentemente, as consciências humanas, não sendo para si mesmas entidades separadas e distintas, não podem ser adicionadas ou combinadas umas com as outras. A síntese de fenômenos individuais, produzindo um fenômeno novo – social, não pode, contudo, criar uma nova consciência, porque isso é o mesmo em todos os indivíduos – a negação do fenômeno não é sujeita a nenhuma síntese, como em geral, a nenhuma relação ou mudança. – Por essa razão, também, o fenômeno social sendo a síntese dos fenômenos psíquicos individuais, existe apenas na consciência humana individual. Pela mesma razão, também, não deixando de ser social, isto é, uma objetificação da consciência de outros homens, é ao mesmo tempo a objetivação da nossa própria e, por essa razão, perfeitamente acessível e familiar para nós. É este objeto no qual as consciências de diferentes indivíduos manifestam sua identidade, em que o “eu” pensante de cada homem se encontra. Em todo lugar – no mundo objetivo – sentimos algo absolutamente estrangeiro e impenetrável, impossível de saber, o obstáculo da “coisa em si” inacessível; aqui, por outro lado, essa “coisa em si”, velada no objeto, é o nosso próprio “eu”, e é por isso que podemos entrar em tais relações íntimas com o fenômeno social, nos sentirmos em casa em todo o campo da vida coletiva, enquanto o ser escuro dos fenômenos físicos do mundo ambiental da natureza, permanece sempre enigmático e absolutamente estranho à nossa intuição, seja qual for a precisão a que possamos chegar no conhecimento deste mundo. O que encontramos no fundo de cada fenômeno social é, portanto, o ser pensante do homem, essa realidade única de caráter metafísico, que não é um fenômeno, é todavia a mais acessível e a mais próxima do nosso sentimento.

A revelação deste núcleo essencial dos fenômenos sociais, desta verdadeira substância do mundo humano, será mais evidente para nós se percebermos que é a apercepção só que socializa os fenômenos. – Os sociólogos estão próximos a essa concepção, quando dizem que “a sociedade é um sistema organizado no final, um todo e não a soma de seus componentes”. Em uma forma primitiva, encontramos em Kant o modo teleológico de considerar a história (em seu tratado: Idee zu einer allgemeinen Geschichte. – O desenvolvimento mais completo do princípio da finalidade, como a chave para todas as ciências sociais, foi realizado hoje por Jhering. No entanto, sua exposição do princípio baseia-se em falsas concepções psicológicas. Para Jhering, o círculo da finalidade é tão amplo quanto o da atividade psicológica. O princípio da finalidade, “nenhuma ação sem propósito”, é tão geral para o mundo psíquico quanto o princípio da causalidade, “nenhum fato sem causa”, para o mundo dos fenômenos físicos. O movimento de uma esponja absorvendo a água é determinado por uma causa; mas o movimento de um animal que bebe é despertado por um fim. Das ações mais simples às mais complicadas, a vida é a adaptação do mundo exterior às necessidades internas. (Jhering, Zweck im Recht, I, 3–33, Bouglé, Ciências Sociais na Alemanha, 104). A concepção de finalidade como sendo um personagem do fenômeno psíquico em geral, foi talvez a causa que impediu Jhering de enxergar a essência dos fenômenos sociais, sua origem aperceptiva. – Para entender isso, precisamos entrar no reino da psicologia pura.

De acordo com os dois polos: positivo e negativo, o objeto percebido e o sujeito percebendo, dois lados sem a coexistência da qual o fenômeno é impossível, devemos, na vida de nossa consciência, na série de fenômenos que se desdobram diante de nós, distinguir dois caracteres da consciência que se complementam: os caracteres intuitivos e aperceptivos. O caráter intuitivo da consciência se manifesta quando a consideramos em relação ao próprio ato de pensar. Considerado a partir deste ponto de vista, apresenta-se a nós em seu lado puramente fenomenal e objetivo, como todos os dados da experiência interior, existindo independentemente do esforço de nossa atenção voluntária e, consequentemente, capaz de opor-se a ela como uma certa passividade objetiva, um certo assunto para a operação intelectual. Por outro lado, o caráter aperceptivo da consciência se manifesta, quando a consideramos em relação a tudo o que observamos como dados em nossa experiência interna, e que nos voltamos assim para o seu lado subjetivo, que não nos prende ao pensamento, sendo acessível para o nosso conhecimento apenas como uma negação de todos os fenômenos, sem qualquer valor positivo da existência. É a negação de tudo que pode dar origem ao desenvolvimento do pensamento, excluindo de si toda passividade e objetividade, consequentemente, tendo o significado da própria atividade interna do nosso “eu” pensante, para o qual, em toda parte e sempre, há oposição aos dados que são usados para operações mentais, objetividade de qualquer tipo e que, precisamente, por essa oposição, manifesta seu ser real e seu valor lógico. – A intuição é, portanto, todo o lado positivo da nossa vida psíquica; e a apercepção, seu lado negativo. A intuição nos une a esse “inconsciente” que nos cerca, como uma “mare tenebrarum” amorfa e anônima; é apenas um reflexo caótico dessas impressões externas e sensações orgânicas, que fluem continuamente para o cérebro em milhares de ondas, todas se fundindo em uma única nebulosa emocional. A apercepção, por outro lado, é a ação de nossa atenção voluntária, de vontade consciente, que é o que percebe e se opõe ao mesmo tempo a esse influxo de intuição. Rumo à nossa intuição, ela desempenha o papel de um aparato ordenador, transformando esse influxo de sentimento indeterminado, confuso e anônimo, que desperta em nós pelo contato com o ser do inconsciente, em representações, concepções e pensamentos, em fenômenos determinados e designados; cumpre o papel de uma força criativa, que dá forma a uma matéria-prima que, a partir do caos de uma nebulosa sensível, constrói todo um mundo de coisas e relações. Cada um dos nossos pensamentos começa e acontece por um ato de apercepção. Cada conceito ou noção é marcado pela ação da atenção voluntária, exercida sobre um estado de intuição concebido do inconsciente. “Nenhum conceito sem um ato de atenção voluntária” – pode ser considerado uma lei psicológica. Em uma palavra, tudo o que percebemos de maneira precisa, com o qual nosso pensamento opera, ao qual podemos dar uma designação, indica um certo lugar na ordem do mundo, a posição de uma coisa, uma propriedade ou uma relação em nosso conhecimento, tudo isso já foi submetido à ação de nossa vontade interior, determinada pela apercepção, passou por um ato de pensamento, realizado com algum esforço de atenção. Por outro lado, os estados virgens de intuição, aqueles que não foram tocados pela apercepção, aqueles que acabaram de emergir do seio do inconsciente, apenas limitam o limiar do pensamento, como uma massa sem forma de sentimento, que é chamado apenas para dar nascimento ao mundo de nossas representações, um mundo concebido em pensamento e existente por pensamento, massa de sentimento, que, tão fortemente sentida por nós nas profundezas cenestésicas, nas emoções anônimas, nos devaneios que não podem ser determinados, jamais poderão, todavia, em sua pureza virginal, ser acessíveis à nossa análise intelectual, porque, assim que fixamos nossa atenção sobre ela, assim que a apreendemos nas armadilhas de a apercepção ativa, ao mesmo tempo em que já está sujeita a uma certa determinação, a uma síntese de pensamento, torna-se um conceito ou noção reservada em uma palavra, um elemento de proposições, o escravo do raciocínio. Portanto, a alma humana é composta de duas correntes simultâneas, continuamente emaranhadas; o único, puramente intuitivo, extraindo seu conteúdo do inconsciente, desenvolve-se por um movimento espontâneo de associações em uma cadeia infinita de mudanças sensoriais de caráter cego, constituindo o fundo profundo e obscuro da vida psíquica; o outro, aperceptivo, é a ação de nossa vontade interior, de nosso sujeito pensante, exercendo-se conscientemente e tendo em vista o fim desses estados sentimentais de pura intuição e transformando-a em um mundo tal que é o objeto de nosso conhecimento, o mundo das coisas, propriedades e relacionamentos. Uma vem do inconsciente “coisa em si”, o ser místico do ambiente, que, através de milhares de excitações, atua em nosso sistema nervoso; é uma corrente oculta, nunca expressa, de natureza emocional e perfeitamente íntima da vida psíquica. A outra vem do nosso sujeito pensante, é a revelação da nossa vontade, e apresenta o lado do raciocínio da alma, a autoconsciência explícita e formalmente expressa nos julgamentos e suas combinações usando a linguagem articulada. Esse é o lado psicológico do problema.

Voltemos agora ao papel social da apercepção. Socializar um fenômeno psíquico significa objetificá-lo; socializar um fenômeno físico é espiritualizá-lo. Agora, nenhum estado psíquico pode ser objetivado sem se tornar uma noção, sem ter adquirido uma certa denominação simbólica, que só acontece quando está sujeita à ação aperceptiva, à determinação por nossa vontade consciente. Da mesma forma, apenas os fenômenos físicos se tornam espiritualizados, passando para o reino da vida social, sobre o qual o ser pensante do homem fixou seu selo de trabalho final. Os estados anônimos de sentimento, pensamento precedente, a nebulosa intuitiva, da qual nosso pensamento remove os diferentes aspectos das representações, permanecem propriedade exclusiva de minha individualidade; por outro lado, determinados de certo modo em noções, socializam na forma de linguagem. A cenestesia nunca é a propriedade inviolável do indivíduo; enquanto toda noção ou conceito, cristalizado em uma palavra, é propriedade de todos, e pode sempre se tornar um fenômeno social, encontrar um lugar em leis, preconceitos, ideias públicas. Uma necessidade que é satisfeita sem um esforço consciente da vontade, como a respiração, pertence exclusivamente à esfera individual e fechada. Qualquer necessidade, por outro lado, cuja satisfação requeira um esforço consciente, de pensamento, de trabalho final, é socializada. Nutrição se torna produção; a reprodução toma as formas sociais dos costumes sexuais, do casamento. Os materiais que nos são fornecidos pela natureza são apenas corpos físicos, desde que constituam apenas o objeto de nossa sensação ou nossa contemplação; mas tendo se tornado o objeto de nosso trabalho final, eles adquirem o caráter de mercadorias. Um processo químico é um fenômeno puramente natural, mas o mesmo processo usado na produção industrial, trabalhado pelo pensamento humano, torna-se um fenômeno social. Portanto, a condição indispensável da socialização do fenômeno é que ele seja penetrado pela nossa apercepção, pela ação do sujeito pensante; essa apercepção, ao observar o fenômeno, encontra-se nele. – Portanto, o ser pensante do homem deve estar no fundo do fenômeno social, sendo um agente geneticamente indispensável de sua aplicação. A socialização do fenômeno equivale a uma espécie de encarnação no objeto do pensamento, do próprio sujeito pensante. Nos estados que precedem o pensamento, a dor, a sinestesia, como no mundo da natureza ambiental, na ação das forças cegas elementares, não nos encontramos, vemos algo absolutamente estranho lá, algo que é acessível a nós apenas de uma maneira superficial, mas em sua essência permanece sempre enigmático, não apenas para o nosso conhecimento, mas também para nossa faculdade de sentir; de onde vem, que esses estados intuitivos que fluem para nós do inconsciente, nunca se tornam sociais, constituem a esfera fechada da própria individualidade. Por outro lado, nos conceitos e noções, no pensamento, nos produtos do trabalho, isto é, em todo lugar que a apercepção atua, se encontra o pensamento “eu”, se tem a ver consigo mesmo e isso constitui ao mesmo tempo a esfera social de nossa experiência, com a qual podemos entrar nas relações mais íntimas, sentindo que sob o véu das aparências fenomenais o misterioso ser do “inconsciente” não está oculto, mas é o próprio homem. Cada movimento de nossa apercepção, cada ato de vontade consciente, cria uma determinada partícula do mundo social, revelando a identidade essencial dos seres humanos, ocultos apenas sob as aparências da diferenciação fenomenal. A individualização, peculiar apenas aos fenômenos, baseada na relação de causalidade, nas variações de tempo e espaço, não pode mais preocupar o sujeito pensante, que, como negação dos fenômenos, permanece sempre a mesma, a substância do mundo humano, idêntica para os indivíduos; similarmente à água, que, encerrada em vasos ramificados e formas diferentes, mas se comunicando uns com os outros, embora tome as várias formas desses vasos e seja separada por suas paredes, no entanto, permanece uma massa uniforme e se comporta como tal em todos os seus movimentos, nos níveis de seu equilíbrio; se, no entanto, ela fosse dotada de consciência, só por causa da diferença de seus vasos, diferenciar-se-ia em indivíduos distintos, sentir-se-ia, em cada vaso, uma individualidade diferente, e percebendo através das paredes do vaso suas ramificações, a água nos outros vasos, teria a ilusão de ver algo absolutamente distinto; por outro lado, olhando em seu interior, observando, à medida que cada movimento de sua massa se reflete nos níveis de todos os outros vasos, ela reconheceria sua identidade. Assim, a ação social da apercepção deriva do fato de que ela, ou seja, o sujeito pensante do homem, é ela mesma a substância do mundo social, e cada vez que se manifesta, ao mesmo tempo cria o núcleo do fenômeno social. Da mesma forma, no entanto, na vida interior, nosso “eu” pensante só pode ser apreendido no aspecto de um fenômeno, como objeto do pensamento, da mesma forma aqui – no domínio social – a identidade mental do homem é objetivada em formas fenomenais, sujeita às leis do espaço, do tempo e da causalidade; não estamos aqui em contato com o puro pensamento metafísico, mas com sua manifestação específica, com os fenômenos do caráter psico-objetivo.

A natureza social da apercepção, que faz com que tudo que passa pelo aparato intelectual, se torne socializado ao mesmo tempo, torna-se a forma universal fenomenal para a comunicação dos sujeitos pensantes, para a manifestação de sua identidade essencial, essa natureza social de apercepção é a razão, para o qual podemos considerar todo o intelecto humano como sendo de natureza social, e o indivíduo humano isolado das influências sociais, essencialmente individual, como uma abstração, à qual nenhuma realidade corresponde, segundo as opiniões de Lázaro e outros sociólogos contemporâneos, que “a alma do indivíduo é o trabalho da sociedade”. Parece de fato tal, quando consideramos apenas seu lado formal, intelectual, cristalizado nos conceitos, enclausurados na linguagem. Lá, em todo o campo da apercepção, tudo é social, porque tudo o que é determinado perceptivamente é o ponto de uma possível objetificação social, o ponto em que o meio humano atua sobre o indivíduo, transmitindo-lhe as aquisições culturais das gerações. Estes são, no sentido estrito do termo, os pontos nodais para os mundos das consciências individuais, onde esses mundos, tão hermeticamente fechados em aparência um para o outro, fundem-se num mundo objetivo, um mundo de fenômenos sociais, graças à identidade essencial dos sujeitos pensantes. Cada noção ou conceito, cada produto do trabalho, deixa a porta aberta para a cooperação entre o indivíduo e seu ambiente humano. Desde os primeiros dias de vida estamos rodeados por uma espessa atmosfera de pensamento humano, acumulada simbolicamente na linguagem e objetos de trabalho, uma atmosfera que forma e desenvolve todo o lado de raciocínio de nossa alma, e aproveita cada movimento de nosso ser pensante, para impor seu conteúdo e suas formas. Esses pontos nodais – concepções e pensamentos ocorrendo em ritmo acelerado – não são, no entanto, nossas almas individuais. É, para usar uma expressão comum de sociólogos, – a “alma social” da nossa consciência. A individualidade se esconde atrás deles, nas profundezas humanas, opõe-se a eles como dados originais de apercepção, concebida no inconsciente, como uma intuição virgem, anônima, que a palavra não pode alcançar – uma massa disforme de sentimento, que está continuamente encolhida no limiar de nosso pensamento, e que a ação perceptiva, o aparato do pensamento, transforma-se apenas em algo manifesto e explícito, em um mundo organizado de nossas concepções. A individualidade é a alma pré-pensante, a nebulosa intacta pelo pensamento da intuição sensorial, que se envolve, por assim dizer, em torno do sujeito pensante, pelo efeito de seu contato com a natureza “inconsciente” e que, carregando em seu seio o principium individuationis – tempo, espaço e causalidade, lhe dá a ilusão de uma natureza distinta, fechado em si mesmo e se opondo a outros assuntos. Sem esse véu intuitivo, que sentimos como nossa cenestesia, como base da natureza individual, produzindo as representações e conceitos – sem esse véu, tecido especialmente para a vida pelo inconsciente – com a mera ação de apercepção (se fosse possível), os indivíduos desapareceriam, o “eu” e a sociedade não estaria mais em oposição.

Portanto, todos os estados preventivos, as correntes cenestésicas, as próprias sensações caóticas, que ainda não estão organizadas em noções e apreendidas nos símbolos da linguagem, os momentos anônimos da alma sobre os quais a apercepção atua, transformando-os em representações, desenvolvendo juízos analíticos a partir desses momentos, em uma palavra, todo o lado da intuição virgem, ainda intacto no pensamento, é a parte individual da alma, o indivíduo adequado. Por outro lado, todos os produtos de pensamento, concepções e julgamentos, o lado aperceptivo da alma, expresso em linguagem e raciocínio, é social. O modo de sentir é diferente para todos e não suporta nenhuma regra; é a propriedade íntima e inviolável do indivíduo. A lógica, por outro lado, o domínio do sujeito pensante, é comum e a mesma para todos e, por isso, obrigatória. Se, então, buscamos a consciência social nas partes comuns das consciências individuais, como Lázaro, no que é universal para mentes particulares, é constante para os espíritos que passam, então veremos que, comum, universal e constante, é apenas nossa apercepção que determina a fenomenalidade que nos é dada intuitivamente. Em cada conceito, como em toda ação e todo produto do trabalho, há uma parte individual, inacessível para os outros, puramente intuitiva, o que sentimos em determinado conceito, e a parte social, para todos o mesmo, o lado formal, de uma natureza aperceptiva, o que definimos e expressamos. A maneira como sinto uma certa impressão não é acessível a ninguém; enquanto sua definição conceitual é comum a todos. O que é exclusivamente individual é minha relação sensorial com um certo produto do trabalho, o grau de meu desejo, gosto, o tipo de utilidade; enquanto o propósito do produto e o trabalho que tem o seu símbolo é social. Desta forma, a relação do indivíduo com a sociedade é resolvida, retornando ao lado intuitivo (preventivo) e ao aperceptivo de nossa consciência. Portanto, tudo o que age imediatamente em nossa intuição, como as propriedades fisiológicas da raça, o ambiente da natureza pertence exclusivamente à esfera individual, forma o indivíduo adequado, influencia a excitabilidade do sistema nervoso, a substância profunda, puramente sensorial, da alma humana. A história, por outro lado, só pode ser influenciada por esses agentes, após sua passagem pelo pensamento consciente do homem, depois de terem assumido o aspecto do trabalho, de concepções, da moral formulada, consequentemente, quando eles perderam seu caráter original, elementalmente natural, virgem do sujeito pensante, da vontade humana consciente.[6] Assim, o fundamento de todas as teorias, que, por meio das propriedades fisiológicas da raça ou da natureza do meio geográfico, tentam, em vão, explicar a história das sociedades, colapsa. Imitando o ingênuo naturalismo de Herder, essas teorias do “sangue da raça” e do “darwinismo social” que buscam no curso dos rios, na conformação das montanhas e planícies, na antropologia da raça, a explicação da história social, e na postura correta e diferenciação dos membros, o ponto de partida para a vida social, apesar de toda a riqueza das observações acumuladas, elas captam abstrações tão estéreis e tão incapazes de fornecer uma explicação da história que, a cada tentativa, são ameaçadas pela irrupção da ideia de uma “predestinação” de povos e uma providência histórica. Sabendo distinguir a esfera individual da esfera social, devemos ao mesmo tempo atribuir ao ambiente natural um lugar adequado na história dos povos, afirmando que, se influencia a vida social, é apenas na medida em que o trabalho final do homem se adapta a ele, na medida em que se torna o conteúdo de ideias e provoca desejos conscientes; mas não une qualquer ligação mística e imediata à história.

Esse caráter social da apercepção, que nos revela a identidade essencial dos sujeitos pensantes dos homens, nos explica, ao mesmo tempo, por que, na vida social, o indivíduo parece perder-se inteiramente, desce ao papel muito subalterno, segundo a expressão de Simmel, “de um ponto de intersecção dos diferentes círculos sociais”, ao valor fútil dos elos variáveis na série de associações e processos históricos. Porque, o que constitui o elo, a base desses círculos associativos, classes, nações, sociedades, a comunidade dos elementos que os compõem, é aquilo que constitui o nosso “eu” pensante: a apercepção, sem a qual a objeção e a fusão dos estados psíquicos individuais, em um interesse, um objetivo, uma ideia coletiva, isto é, no que constitui a “alma” de uma determinada associação não pôde ser realizado. O homem, portanto, manifestando em um grupo social sua identidade essencial com outros seres humanos, liberta-se, por assim dizer, dessa objetificação social, dos elos de sua aparente limitação individual, sem deixar de ser, sem perder o próprio “eu”; para o grupo social que absorveu o indivíduo em si, não constitui nada distinto e superior ao ser de um homem particular, mas deve a sua existência precisamente e unicamente a este fato, que este ser pensante, este “eu” de cada homem, por meio da apercepção, com base em interesses comuns, pensamentos e desejos, encontrava-se em outros cérebros humanos. Em toda a vida social esta unidade de sujeitos é perfeitamente manifestada, a unidade do ser pensante, que é diferenciada e dividida em indivíduos apenas na aparência, em fenômenos; manifesta-se igualmente na vida simultânea dos homens, unidos em diferentes comunidades, onde o indivíduo desce quase ao ponto de um ponto matemático, como na vida de sucessivas gerações, no curso das fases históricas. Enquanto os indivíduos perecem e mudam, incapazes de comunicar ou transmitir a alguém sua “individualidade” ilusória incluída nas sensações, o pensamento “eu” dos indivíduos, objetivado nos fenômenos sociais, em invenções técnicas, em leis, em ideias coletivas, sempre avança em seu desenvolvimento, como o ser imortal da humanidade, para que a evolução da cultura social não se renove a cada geração, não interrompe seu quadro secular, mas permanece único e contínuo. A inteligência objetivada dos gênios mortos, das gerações passadas, vive e continua a se desenvolver, embora não possa tirar a vida das próprias coisas em que se cristalizou através da ação de sua vontade criativa, e é encontrado apenas na consciência de novos homens. “Uma dedução começa na cabeça de um indivíduo para terminar na de outro. Perguntamos as premissas de que nossos filhos tiram conclusões”(Bouglé). Pensamento, raciocínio, vai além do indivíduo; as necessidades e ideias desenvolvidas em uma geração tornam-se a ação, a revolução, na próxima. A história não conhece saltos, pois a natureza não conhece vazio ou criação ex nihilo; aqui, o que impede é a unidade de matéria e energia, que se manifesta apenas numa infinita variabilidade de formas; ali, é a unidade do ser pensante, oculta sob uma multidão diferenciada de cérebros.

A omissão desta verdade, que é a única apercepção que socializa os fenômenos, e que esta natureza social da apercepção é ao mesmo tempo a revelação da identidade dos sujeitos do pensamento humano, tem enganado sociólogos de todos as escolas e nuances, nos falsos caminhos da metafísica social, obrigou-os a criar a concepção mística de uma “consciência social” sendo a síntese da nossa e diferente deles por sua natureza, para trazer para a cena da história os “espíritos” de nações e classes, como base essencial para a explicação da vida social, e a partir daí, levou-os a teorias com consequências práticas, como a do Lázaro, que o espírito da nação é diferenciado em espíritos de classe, que ao mesmo tempo formam uma síntese harmônica, e que, entrando em um antagonismo muito grande entre eles, causa a decadência do todo. Deste modo, a filosofia social se engaja em um círculo vicioso, porque, admitindo como base e fonte dos fenômenos sociais, as consciências “sintéticas” das comunidades, as mentes das classes e nações, ao mesmo tempo, coloca questões insolúveis, a saber: como essas comunidades poderiam ser produzidas sem fenômenos sociais, e de que maneira as almas dos indivíduos, sendo o produto social, são, no entanto, sintetizadas naquilo que constituiria a fonte primitiva e a base da vida social; de fato, qualquer coletividade requer agentes sociais já existentes, para que isso possa acontecer a menos que admitamos a intervenção criativa de uma providência; consequentemente, não pode explicar a existência de fenômenos sociais; e os elementos dessa coletividade – almas individuais – não podem ser seus produtos ao mesmo tempo. Essas dificuldades desaparecem, se admitirmos como tese, que o princípio que condiciona os fenômenos sociais é o nosso próprio “eu” pensante, o único para todos, que, portanto, nenhuma consciência superior surge da síntese da nossa, já que a síntese aqui é bem igual aos elementos. O agente social existe na consciência individual, é essa consciência em si. Por outro lado, nações e classes, longe de constituírem um ser metafísico, condicionando a vida social, como seu prius Κατ’ἐξοχήν, são, pelo contrário, são apenas o efeito dessa vida social, o produto da fenomenalidade, e sujeita, como ela, à mudança e à destruição. Classes e organizações sociais podem ou não ser, dependendo da fase em que se encontra a história. O fenômeno social precede o advento desses agrupamentos humanos, por isso não pode ser condicionado por eles. Toda coletividade, todo laço social – um interesse, uma ideia – exige a admissão de um substrato social já existente, bem como a busca de sua fonte fenomenal, sua causa determinante; A apercepção sozinha, o sujeito pensante que se opõe a toda fenomenalidade, não nos permite buscar sua causa, e somente ela é suficiente para si mesma como uma substância social.

Essa propriedade essencial dos fenômenos sociais, que eles objetificam em si mesmos o ser pensante do homem, é ao mesmo tempo a razão pela qual a categoria ética, expressa na forma de um “deve ser”, pode universalmente se aplicar. Podemos até dizer que, onde quer que a categoria ética possa ser aplicada, temos que lidar com fenômenos sociais ou socialização. Isso resulta, como vimos, do fato de que é apenas no ser pensante do homem que a contradição do determinismo e da liberdade se resolve (ver nossos primeiros parágrafos). A categoria ética aplica-se à vida psíquica nos únicos casos em que a apercepção atua; para sonhos, associações, instintos, não conhecemos nenhum padrão obrigatório; por outro lado, existem para conceitos, julgamentos e raciocínios; eles não encontram aplicação para ações impulsivas, mas apenas para ações finais. Da mesma forma, os processos físicos, por si mesmos absolutamente estranhos à categoria ética, estão sujeitos a ele, quando estão ligados ao pensamento humano, adaptados a um trabalho consciente. Em suma, tudo o que é imbuído de apercepção, com a ação da vontade consciente do homem, apresenta um terreno aberto para os padrões éticos, para a liberdade do ideal. A apercepção moraliza fenômenos. Poder-se-ia, assim, dizer que a categoria ética é o reagente mais sensível, segundo o qual reconhecemos a sociabilidade dos fenômenos e, onde quer que apareça, começa a objetivação do ser pensante, o mundo social. A aplicação a este mundo do duplo método criativo e científico é, portanto, evidente por si mesmo; pois onde quer que o homem se encontre, ali, juntamente com a causalidade, sempre aparece a finalidade, o dever, o ideal, o domínio da contingência própria do sujeito. Tendo chegado a esses resultados por pura dedução, vemos, contudo, ao mesmo tempo, que essa íntima união da categoria ética com o fenômeno social é o nosso conhecimento intuitivo; nós o possuímos independentemente de qualquer teoria, e está tão profundamente arraigada em nossa intuição que, mesmo assim, que seríamos seguidores do fatalismo mecânico puro na vida social, não poderíamos, contudo, nos libertar dessa necessidade mental de aplicar a essa vida a categoria moral, submetendo cada região a esses fenômenos, o critério do que “deve ser”. Assim, a análise que realizamos, de acordo com a intuição universal, enfatiza ainda mais a verdade do princípio do fenômeno social como sendo a objetivação do ser pensante do homem.

[1] “Além de sua relação com o sujeito, o objeto deixa de ser um objeto, e se é removido dele ou se é abstraído dele, ao mesmo tempo, toda a existência objetiva é suprimida.” (A. Schopenhauer, raiz quádrupla do princípio da razão suficiente, tradução francesa, 46).

[2] “Pode-se”, diz Schopenhauer, “desconsiderar qualquer conhecimento especial e, assim, chegar à proposição” eu sei “, que é a última abstração de que somos capazes; mas esta proposição é idêntica a esta: “há objetos para mim”, e este é idêntico a este outro: “Eu sou sujeito”, que contém nada mais do que o simples eu “. (Raiz quádrupla, etc., págs. 217.)

[3] Kant diz: “A necessidade natural será inerente a qualquer combinação de causas e efeitos no mundo sensível, mas a liberdade será concedida àquela das causas que não são em si mesmas um fenômeno (embora sirvam de base para o fenômeno). Consequentemente, a necessidade (literalmente, natureza) e liberdade podem ser atribuídas sem contradição ao mesmo objeto, dependendo se é considerado em um aspecto diferente, seja como um fenômeno ou como uma coisa em si”. (Prolegômenos para toda a metafísica, § 53).

[4] Encontramos em M. Tarde um pensamento semelhante: “Nada mais banal”, diz ele, “do que a ideia de que uma combinação difere ou pode ser completamente diferente de seus elementos, e que a simples aproximação destes pode originar uma realidade inteiramente nova, não preexistente em outras formas. A Química e biologia credenciaram esse preconceito. Aqui, na sociologia, temos, por um privilégio singular, o conhecimento íntimo do elemento, que é a nossa consciência individual, bem como do composto, que é a reunião das consciências … Eu digo que é um privilégio singular, porque em todos os lugares somos completamente ignorantes do que está dentro do elemento. O que está no fundo da molécula química, da célula viva? Nós não sabemos disso. Como então, nós ignorantes, podemos afirmar que, sendo desconhecido, ela revela aos nossos olhos novos fenômenos, um organismo, um cérebro, uma consciência, a cada passo dessa escada mística, houve uma súbita aparição, uma criação ex-nihilo do que não foi no passado, mesmo no germe? Não é provável que, se soubéssemos em sua intimidade, essas células, essas moléculas, esses átomos, essas incógnitas do grande problema, tão frequentemente tomados por dados, achamos muito fácil deixar de lado os fenômenos criados em aparência por sua conexão, e que, no presente, nos surpreendem?” (Sociologie élémentaire, Annales de l’Institut International de Sociologie, 1895, pp. 221–3)

[5] Poder-se-ia considerar a “consciência social” como uma nova edição l’absolu de Schelling, que, fundindo-se indissoluvelmente com “vontades individuais”, produz a história da humanidade, une a liberdade subjetiva à necessidade objetiva. Este absoluto é “o princípio superior tanto ao sujeito quanto ao objeto, que não pode ser nenhum dos dois, mas que, no entanto, constitui sua unidade”. É “a substância inacessível cujas inteligências são apenas poderes ou funções”. – “A história”, diz Schelling, “é a evolução desse princípio, o absoluto, que se expressa mais ou menos em todas as ações e, assim, estabelece entre elas uma cadeia e uma harmonia, lhes dá regularidade e lei, e compõe com eles, sem deixar de ser livre, um poema ou um drama magnífico. Enquanto se manifesta em toda a extensão e ao longo de toda a duração, o absoluto não pode, em qualquer lugar ou tempo, expressar-se e realizar-se inteiramente. Se ele fizesse, nada existiria além dele; indivíduos, a liberdade deixaria de ser. No entanto, revela-se apenas através do livre jogo das vontades individuais; se essas vontades não fossem livres, ele não poderia existir; eles são, de certo modo, seus colaboradores. E assim a consequência da ação do absoluto através dos seres inteligentes é que os atos destes, que constituem a história, não são exclusivamente livres nem exclusivamente necessários, mas, ao mesmo tempo, necessário e livre.”

[6] O analógico é também, mas alcançado por outros meios, a conclusão de Lázaro e Jhering. Lázaro considera que a ação das coisas na psicologia dos povos não é imediata e direta. A natureza não forma os povos por uma espécie de operação mística; os povos se formam, lucrando consciente ou inconscientemente, com mais ou menos habilidade ou felicidade, a partir dos dados da natureza. As coisas exteriores, portanto, agem na história, mas através da mente. Assim, a antropologia não pode substituir a psicologia dos povos. Jhering também pensa que o ambiente natural, a conformação geográfica do solo, embora possua, segundo ele, uma grande influência na história, nunca atua de maneira mecânica e imediata. Para que eles possam evocar uma reação do nosso lado, é necessário que eles passem por nossas mentes, se tornem padrões. A causalidade só pode agir em nossa vontade assumindo a forma de finalidade. (D’après Bouglé, Sciences soc. en Allemagne, p. 54, 105)